Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Procure saber da biografia proibida de Roberto Carlos

O preço da biografia “Roberto Carlos em detalhes”, que era oferecida por valores entre R$ 280 e R$ 500, saltou para R$ 800 em apenas uma semana no site Estante Virtual, que reúne sebos de todo o Brasil. Das oito lojas de livros usados que antes anunciavam um exemplar ali, só restava, até o fechamento desta edição, o Sebo Porão Campinas, que descrevia assim sua “joia”: “Livro raro de ser encontrado à venda e esgotado nas editoras.” Por onde quer que se procure saber da biografia escrita por Paulo Cesar de Araújo, não autorizada e retirada de circulação em 2007 depois que Roberto Carlos recorreu à Justiça, o clima oscila entre a incerteza, o tabu e, principalmente, o medo do Rei.

– Não coloca meu nome, não, mas é hipocrisia proibir o livro. O escritor tem que ser livre para escrever, e, se o biografado achar ruim, vai à Justiça para discutir aquilo com que ele não concorda – opina um engenheiro, de 28 anos, cliente da Livraria O Acadêmico, no Centro, frequentada por funcionários da Petrobras e do BNDES.

O dono da livraria, Carlos Cardiano, diz que é constante a procura pela biografia de Roberto Carlos:

– Sempre perguntam desse livro.

Dono de uma banca da feira da Praça Quinze, Francisco Olivar vendeu seu último exemplar há seis meses, por R$ 200:

– Mas passa aqui semana que vem que eu vou ver se consigo pra você.

Em outro ponto da feira, onde vendedores costumam trabalhar com artigos do universo do Rei, um senhor aceita ser entrevistado, mas avisa:

– Não bota meu nome, porque eu não quero nada com o Roberto Carlos, ele é um cara chato, bobo, quer tudo só pra ele. Ainda precisa aprender aquela ideia de que é proibido proibir. Agora, implicou com um livro sobre a Jovem Guarda (a dissertação de mestrado de Maíra Zimmermann, que recebeu uma notificação extrajudicial).

A aparição do cantor no “Fantástico”, no domingo passado, para falar sobre a polêmica das biografias, também provocou efeitos. Em Sorocaba, São Paulo, a foto marcada para esta reportagem no Sebo Literário (que tinha um exemplar à venda por R$ 300) foi cancelada. O dono recolheu a obra na manhã de segunda-feira, afirmando que o livro era dele e não estava à venda – em seguida, disse que sequer estava com ele. No Sebo Carlos Gomes, em Campinas, um comprador que havia reservado um exemplar oferecido por R$ 290 apareceu antes do prazo combinado para retirá-lo.

– Compramos em lotes. Por isso, não sabemos de onde veio essa biografia do Roberto Carlos – diz Renata Mucci, dona do Sebo Carlos Gomes.

O receio em torno do livro é infundado e qualquer sebo pode vender exemplares à vontade, segundo o próprio advogado de Roberto Carlos, Marco Antonio Campos. Estima-se que, até o recolhimento, foram comercializadas 50 mil unidades.

‘Roberto Carlos em detalhes’: a busca

O assunto voltou ao centro das atenções porque há duas iniciativas para tornar livre de autorizações o trabalho dos biógrafos no Brasil – uma ação no Supremo Tribunal Federal, com audiência pública marcada para 21 e 22 de novembro, e um projeto de lei na Câmara dos Deputados. Questionar isso é o mote do grupo Procure Saber, do qual também fazem parte, além do Rei, Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil (que tem dois exemplares da biografia de Roberto em casa). Nessa história toda, “Roberto Carlos em detalhes” surge como estrela. O livro-protagonista é, inclusive, personagem de uma narrativa um tanto misteriosa, da qual Paulo Cesar ainda segue a pista:

– Me disseram que um caminhoneiro recolheu os livros de um depósito público e levou para um galpão do Roberto em Diadema, e que, lá, um velhinho toma conta deles.

Seguindo a pista desse enredo que envolve até um guardião de milhares de livros que não podem ser lidos, só o azul celeste típico do Rei, que colore os portões do tal galpão, aparentemente liga o endereço, no ABC paulista, a Roberto Carlos. Pouca gente sabe da existência do lugar, para onde teriam seguido os 11 mil exemplares recolhidos em maio de 2007 pela Editora Planeta após um acordo na Justiça. Nem o historiador de Diadema, Walter Carreiro, confirma a existência de um imóvel do ídolo na cidade. Já ouviu falar, mas nunca soube onde fica. Para muitos ali, a hipótese de as biografias estarem em Diadema é absurda:

– Alguma coisa do Roberto Carlos aqui? Nunca ouvi falar – surpreende-se um guarda municipal.

Mas tem quem já ouviu. Perguntando aqui e acolá, chega-se ao galpão do Rei na cidade. A campainha demora a ser atendida. Vizinhos de uma oficina de motos recomendam insistir. Pois Josias, o funcionário, nunca sai dali. Estão certos. Mais um pouco e o portão de ferro se abre. De bermuda, chapéu e aparência bem disposta, o guardião do Rei é pego de surpresa. Mas o problema mora nos detalhes, e a pergunta, à queima roupa, fica sem resposta.

– Não sei de nada, não falo nada, não tenho nada a dizer. Desculpe, estou ocupado – diz ele, com um sorriso nervoso.

O silêncio de Josias deixa sem resposta a pergunta: os 11 mil exemplares da biografia proibida ainda existem ou viraram pó, como se especulou na época do recolhimento? Roberto Carlos sempre afirmou que os livros foram para um lugar onde não o incomodam. Paulo Cesar, o autor, há pouco precisou de dois exemplares para mandar para uma tia, no interior da Bahia, e recorreu ao site de uma livraria portuguesa, a Bulhosa Livreiros, que vende a obra por um preço ótimo em euros: 9,90. O problema é que a entrega demorou dois meses. Outro mistério que o autor gostaria de desvendar é de onde vem o estoque da Bulhosa.

A polêmica das biografias de fato esquentou a procura por “Roberto Carlos em detalhes”. No site da Amazon, a obra, que estava sendo anunciada por US$ 189, aumentou, num dia, para US$ 273,18. Já pela página da Saraiva na internet, o leitor vai ter que esperar a tal conversa a que Roberto Carlos se referiu na entrevista do “Fantástico” para que o livro possa voltar às prateleiras. O preço anunciado é o original, R$ 59,90, mas com a ressalva “Avise-me quando estiver disponível”.

Outro efeito da chamada “mão invisível do mercado” é a pirataria. O autor da biografia de Roberto tem um exemplar que é um arremedo do livro, menor do que o original e sem sua assinatura, comprado por um amigo, este ano, em Florianópolis, por R$ 100, depois de uma negociação que rendeu um abatimento de R$ 50.

Enquanto a lei da oferta e da procura segue mostrando seu poder, o território livre da internet vê a biografia circular pelo mundo ao sabor do interesse de quem quiser lê-la. O americano Steve Wilson, por exemplo, mandou um e-mail para o autor da obra explicando que já morou no Brasil de 1974 a 1976, virou fã de Roberto, ficou muito feliz em achar o texto na internet e queria saber como poderia fazer para pagar por ele. “Não sou pobre e posso arcar com o preço justo, que espero que seja menos de US$ 200. Gostaria de pagar pelo uso do livro, pela oportunidade de ler esse trabalho tão excelente que consumiu tanto esforço e pesquisa para o senhor escrever. Obrigado”, disse Steve.

Paulo Cesar afirma que preferiu dizer ao leitor americano, e a alguns outros que já demonstraram a mesma vontade de pagar pelo download, que esperasse o livro ser liberado (um fato que o autor aguarda com convicção) para comprá-lo.

Sobre o status legal da publicação, também pairam especulações. O biógrafo afirma que o que houve foi um acordo entre Roberto Carlos e a Planeta, que foi criticada na cobertura do caso na época, já que teria desistido de levar a cabo a defesa diante da afinidade do juiz com o Rei (foi noticiado que o juiz Tércio Pires quis tirar foto com o cantor e que, sendo um artista amador, lhe deu um CD, além de a editora ter sido ameaçada de fechamento). A Planeta, hoje, considera um transtorno falar no assunto e afirma, fazendo a ressalva de que quase nenhum funcionário que viveu o episódio permanece lá, que houve uma decisão judicial determinando o recolhimento dos livros e a entrega ao Rei. O advogado do cantor, Marco Antonio Campos, no entanto, informa que a declaração da editora não está correta e que o que houve foi mesmo um acordo, mas que dele também faz parte o autor da biografia.

O fogo cruzado de informações torna o caso nebuloso até na Biblioteca Nacional. Um funcionário do setor de consultas demonstra dúvida ao ser questionado sobre o acesso à obra: “Esse livro não sei se pode consultar, porque tá proibido… Mas tenta, vamos ver.” E emenda puxando o assunto das biografias. Revela ter opinião diferente de um colega de trabalho, que considera a restrição “um tabu”. No fim das contas, o que importa é que na Biblioteca Nacional não há veto e o livro pode ser consultado sem problemas.

São muitas também as histórias em torno do vinil “Louco por você”, lançado em 1961 pela Columbia e que teria sido renegado pelo cantor (leia sobre esta e outras proibições no box à direita). No Centro de São Paulo, diz a lenda que, na década de 80, Roberto colocou nas ruas caçadores do vinil, que tinham ordem para comprar o disco a qualquer preço. Renegado ou não, “Louco por você” nunca foi relançado. O fato, aliado à lenda, o faz caro e raro. Um vinil desse só é mostrado por fotos exibidas por quem tem. Um colecionador chegou a oferecer por R$ 5 mil para Luiz Calanca, da Baratos e Afins, na Galeria do Rock, na Rua 24 de Maio. Deixou um telefone de contato, que não é achado:

– O vinil vale entre R$ 6 mil e R$ 7 mil. Há 12, 15 anos atrás, cheguei a ter um e vendi por R$ 2 mil. É uma relíquia.

Quando o assunto é o livro, a Planeta silencia sobre quantos exemplares foram impressos (o autor diz que foram 60 mil), o que faz as páginas parecerem ainda mais raras. Dois dias antes de Roberto se pronunciar na TV, o preço de “Roberto Carlos em detalhes” já se igualava no mercado ao dos três volumes encadernados das obras completas de Eça de Queiroz, editados em 1958 em papel bíblia pela Lello & Irmão. Quem tem a biografia a guarda como algo precioso. A cada discussão sobre o tema, sobe a cotação.

– Se eu soubesse, tinha comprado mais – diz Erivelton Nascimento Silva, livreiro andarilho que caça preciosidades a bordo de uma bicicleta e as entrega na casa dos clientes.

Erivelton arrematou a biografia do Rei no supermercado Carrefour de Diadema, quando a venda ainda era livre. Na etiqueta, o preço era R$ 60, mas, quando conferiu o valor no leitor de código de barras, viu que era uma bagatela, menos de R$ 30. Erivelton chegou a ser sondado por um cliente dois anos atrás. Pediu R$ 350. O sujeito achou caro. Não vendeu, mas alugou por um mês para leitura. Não lembra quanto cobrou.

– A lenda em torno da biografia é que a faz valiosa. É como o vinil do primeiro disco dele ou a “Playboy” da Xuxa. Em alguns sebos cobravam R$ 50 apenas para folhear a revista – conta Aloísio Costa de Jesus, dono do sebo Pop Art, de Diadema.

No rastro da proibição, o autor de “Roberto Carlos em detalhes” viu nesses anos todos manifestações como uma mesa da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) sobre o tema e até um bolo-réplica do livro, do empresário Amílcar Eduardo, que em seu aniversário de 2007 expressou assim sua posição contra a restrição.

Com a proibição, não saíram como o esperado os planos de Paulo Cesar, que começou a trabalhar aos 9 anos, foi engraxate, feirante, vendedor de picolés e saiu de Vitória da Conquista, na Bahia, para tentar a vida em São Paulo e depois no Rio. Ele pretendia, com a venda da biografia, se dedicar mais à vocação de escritor e historiador (o autor largou o segundo emprego que tinha como professor para concluir o livro, depois de 15 anos de pesquisas). O trabalho de escritor sempre foi feito com a dificuldade de conciliar suas tarefas com a vida de professor (a gravação da entrevista com Chico Buarque, por exemplo, que ganhou as manchetes recentemente porque o compositor não se lembrava dela, foi registrada por um conhecido que vivia de filmar batizados).

No vídeo divulgado na última terça-feira pelo Procure Saber, o Rei diz: “Não negamos que esta vontade de evitar a exposição da intimidade, da nossa dor, ou da dor dos que nos são caros, em dado momento nos tenha levado a assumir uma posição mais radical.” É uma deixa que reforça a esperança de que ele se refira também ao combate à biografia como radical.

Nos sebos da cidade, a torcida é por aí:

– Algumas pessoas lutam a vida inteira para conseguir um pirulito, um biscoito, enquanto outras, como o Roberto Carlos, conseguem alcançar tudo, têm apartamento… Depois de ele chegar aonde chegou, em que o livro poderia atrapalhar? Aprendi com a vida o chamado “se aborreça menos” e, agora, tento não virar um velhinho chato e ver o que posso fazer de melhor, é o que eu aconselho a todos também – diz o livreiro Antonio Carlos Clementino, do sebo Letra Viva.

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Claudia Amorim e Cleide Carvalho, do Globo