Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Batalha

Impressionante a quantidade de energia gasta no debate sobre as biografias. Poucos outros assuntos foram tratados recentemente com tanto destaque. Hoje, ultrapassados os momentos mais emocionantes daquilo que este jornal chamou de “Batalha” (com B maiúsculo – será que entrará para livros de história como a Guerra do Paraguai?), talvez já seja possível identificar aprendizados coletivos importantes. Muita gente produziu textos longos repetindo aquilo que pioneiros libertários da internet nos ensinaram: a informação quer ser livre.

Sim, liberdade e coletividade são palavras que sobressaem na leitura de depoimentos que já decretaram que “a sociedade venceu o debate”. Fiquei alegre ao encontrar, mesmo entre advogados de editoras, o seguinte consenso: conhecimento é produção coletiva, e seus resultados, ainda que provisórios e contraditórios, são – em última instância – bens públicos. Essa é a consequência lógica da tese – defendida por Roberto Feith – “de que a trajetória de Getúlio, Garrincha ou Noel Rosa, a de Lula, Pelé ou Caetano Veloso fazem parte de nossa ideia de Nação” e, por isso mesmo, “o acesso de historiadores e escritores às suas trajetórias deve ser pensado no contexto do direito dos brasileiros de acederem à história de seu país”. Em resumo: “Sua história também faz parte da história de todos nós.”

Parece definição de domínio público. Na base de qualquer legislação sobre direito autoral está o entendimento de que criações artísticas, avanços científicos e ideias são – também em última instância – bens coletivos. A sociedade, buscando incentivar mais invenção, concede generosamente aos criadores a possibilidade de explorar comercialmente sua produção por períodos de tempo bem determinados. Depois tudo necessariamente deve voltar para seu lugar natural, o domínio público, contribuindo livremente para novas produções, aumentando o conhecimento da Humanidade sobre si mesma.

Tarefa coletiva

Espero que a Batalha das Biografias acelere a formulação de legislações de direitos autorais – no Brasil e em tratados internacionais – que coloque o bem público como fundamento de todo o resto (até para o bem, em termos de renda, dos artistas, que terão mais material livre para recriar – recriação é elemento essencial de toda arte). As editoras poderiam lutar pela redução do período para as obras voltarem ao domínio público. Que ninguém se preocupe: não estou advogando o retorno aos 14 anos depois da criação, como foi na época de Thomas Jefferson. Apenas considero que 70 anos depois da morte dos autores é um absurdo contra a memória nacional.

(Eu poderia lançar propostas mais radicais. Inspirado em licenças copyleft – que divulgaram a ideia de “ShareAlike” [todo produto derivado de um software livre deve ser livre também – lembro: muitos softwares livres podem ser comercializados; e cada vez mais indústrias/autores lucram liberando seus produtos] – talvez fosse educado sugerir que os produtos derivados de vidas-privadas-que-são-consideradas-domínio-público devessem ser domínio público também. Mas isso seria pregar a abolição do direito autoral, coisa que nunca fiz. Reconheço o direito dos biógrafos/editoras de terem exclusividade sobre as vendas dos seus trabalhos, mesmo que envolvam exploração privada do que é propriedade coletiva.)

Já que estamos falando nessa memória: por que não usamos pequena porcentagem da energia do debate sobre as biografias para a melhora dos verbetes biográficos na, por exemplo, Wikipedia em português? O acesso à história de nosso país ganharia upgrade imediato. Compare a maioria dos verbetes em inglês, mesmo sobre assuntos brasileiros, com os verbetes em português. Vergonha nacional? Sabemos que, para a maioria da população, a principal fonte de informações biográficas será, predominantemente, a internet (e os primeiros resultados de qualquer busca on-line geralmente são da Wikipedia), e não os livros em papel (nada contra os livros em papel, vou amá-los/comprá-los compulsivamente enquanto estiverem à venda). Vi a proposta de biografia não autorizada de Caetano no Facebook. Mas aquilo ali é território privado, cercado, sem garantias de preservação. O que estamos fazendo para tornar as informações on-line mais confiáveis, com vida longa assegurada? Iniciativas centralizadas como a do Itaú Cultural ou do Dicionário Cravo Albin, excelentes fontes de dados biográficos de nossos artistas, vão infelizmente se mostrar insustentáveis (como a Enciclopédia Mirador). Não há escapatória: a construção dessa memória é tarefa coletiva. A qualidade dos resultados é responsabilidade de todos – e dá trabalho para todos.

Feliz dia da proclamação da “coisa pública”!

******

Hermano Vianna é colunista do Globo