Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os donos da história

Sempre acho bom evitar a personalização nos debates e controvérsias porque ela acaba desviando as atenções do tema principal, mas na polêmica das biografias não autorizadas, por envolver alguns dos mais renomados músicos do país, já não é possível dissociar posições dos que as defendem. De modo que, como autor, me vejo obrigado, pela primeira vez, a discordar do Chico, do Caetano e do Gil, líderes do grupo Procure Saber, com os quais sempre me senti irmanado quanto ao essencial, às matérias de relevância nacional como esta. O mesmo já não posso dizer do outro protagonista no noticiário sobre o caso, o Roberto Carlos, que nunca nos deu a oportunidade de concordar ou discordar dele simplesmente porque se desconhece o que pensou até agora, inclusive quanto à ditadura. E vago e impreciso continuou sendo na badalada entrevista ao Fantástico.

Penso que a memória dos grandes vultos e personalidades do país, inclusive da área artística, é propriedade pública, parte inalienável da identidade nacional, e, como tal, não pode ficar à mercê ou depender da vontade, do capricho, das idiossincrasias ou, como ocorre com mais frequência, da cobiça dos seus herdeiros; a estes cabe, sim, parcela já regulamentada dos lucros financeiros decorrentes do culto a essas memórias, da venda das suas obras, pois são, afinal, legatários do prestígio dos seus antepassados.

A experiência vem demonstrando que é nas vantagens pecuniárias que se concentra e fundamenta a maioria das objeções e exigências dos familiares, como tão bem exemplifica o caso de Estrela solitária, a excelente biografia do Garrincha escrita pelo Ruy Castro, relatado pelo seu editor, Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, no Segundo Caderno do Globo de 17 de outubro.

Família imperial

O Brasil é um dos poucos países em que ainda vigora essa aberrante forma de censura prévia, a autorização de biografias, uma flagrante violação do direito constitucional à liberdade de expressão, incompatível com a democratização em curso, muito embora os abusos e infrações no exercício deste direito já estejam até previstos legalmente, inclusive com a cominação das respectivas punições.

Em suma: ou completamos e modernizamos a nossa legislação nessa área, com a aprovação do projeto que tramita na Câmara Federal, ou convoquemos a família imperial para integrar as bancas universitárias que julgam as dissertações e teses de pós-graduação em História do Brasil referentes aos seus ilustres antepassados.

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Arthur José Poerner é escritor e jornalista