Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Para especialistas, guarda de dados no país é inócua

Após quase 20 dias trancando a pauta da Câmara, o Marco Civil da Internet deve ser votado na próxima semana. A expectativa é que a neutralidade na rede seja mantida, mas a obrigatoriedade da guarda de dados em servidores no país ainda causa polêmica. De acordo com o relator do projeto, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), o governo vai insistir na questão, já que foi um pedido da presidente Dilma Rousseff. Porém, especialistas e representantes de empresas de tecnologia criticam a proposta, considerando-a inócua e prejudicial à inovação.

A decisão de incluir o artigo sobre a guarda de dados em território nacional surgiu após a revelação de que altos escalões do governo teriam sido alvo da bisbilhotagem americana. O argumento é que, com as informações armazenadas no país, a interceptação dos dados seria dificultada. Além disso, a nova regra aumentaria a segurança jurídica, pois muitas vezes empresas estrangeiras não cooperam com investigações alegando que as informações estão sujeitas à legislação dos países onde a matriz está instalada.

O secretário executivo do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), Hartmut Glaser, considera a medida inócua quando se trata da proteção contra a espionagem. Segundo informações reveladas pelos documentos vazados, parte da captura se dava nos cabos submarinos que conduzem a informação, sendo que praticamente todos passam pelos EUA ou países aliados. Contudo, o especialista é favorável ao armazenamento de dados de brasileiros no país, mas a discussão deveria ser feita em outro momento.

Sobre a cooperação judicial, o próprio Marco Civil dá conta, no artigo 11, determinando que a legislação brasileira deve ser respeitada “em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, dados pessoais ou de comunicações em que pelo menos um desses atos ocorre em território nacional”, sendo que o disposto se aplica mesmo que as atividades sejam realizadas por empresa sediada no exterior, desde que tenham representação no país.

Google: questão é diplomática

Para o diretor de políticas públicas da Google Brasil, Marcel Leonardi, a proposta do governo é uma “medida draconiana surgida aos 48 minutos do segundo tempo”. Segundo ele, o mecanismo de cooperação entre os governos já existe. Trata-se do MLAT (Mutual Legal Assistance Treaty), que o Congresso brasileiro referendou em 2001. Por meio dele, a Justiça brasileira pode pedir à Justiça americana documentos que estejam sob sua jurisdição, e vice-versa: “A reposta é reformar o MLAT, não obrigar o ecossistema de internet a armazenar dados no Brasil achando que isso vai resolver alguma coisa”, afirmou Leonardi durante a Futurecom, realizada no mês passado, no Rio de Janeiro.

Segundo fontes, a inclusão do artigo no texto do Marco Civil é uma retaliação política ao caso de espionagem americana. O texto determina que o decreto a ser publicado pelo Executivo deverá considerar o porte das empresas, o faturamento no Brasil e a amplitude da oferta do serviço ao público brasileiro. Traduzindo, endereçado a grandes corporações, como Google e Facebook, apontadas em documentos vazados por Edward Snowden como colaboradoras nos esquemas de espionagem.

A iniciativa do governo brasileiro recebeu destaque no Financial Times. Em editorial publicado esta semana no prestigiado jornal britânico, a medida é vista como negativa para a “liberdade global na internet”. Segundo a publicação, o mundo pode ser dividido em dois grupos: um liderado pelos EUA, com liberdade na rede; e outro que controla o acesso, como China, Rússia e Irã. “Se o Brasil, o segundo maior mercado mundial do Facebook, se tornar um defensor do protecionismo na internet, outros o seguirão”, diz o texto. “É ruim para o Brasil, que pode sofrer economicamente, e ruim para a internet, que corre o risco de entrar numa era de fragmentação e regulação. Dilma precisa pensar novamente.”

A liberdade de escolher

Como o projeto não é claro quanto ao alcance da medida, empresários do setor de tecnologia estão preocupados. Levantamento realizado pela BigData Corp aponta que 66% dos sites com extensão “.br” estão hospedados em servidores no exterior. O principal motivo, explica o diretor executivo da empresa, Thoran Rodrigues, é o preço. Os custos para utilização de centros de dados no país é cerca de 30% maior que nos EUA. Na Amazon Web Services, por exemplo, a hora de uso mais barata em São Paulo custa US$ 0,08, enquanto no estado americano do Oregon o mesmo serviço sai por US$ 0,06. “Empresas que atuam com produtos online competem com o mundo inteiro. Uma imposição dessas reduz a nossa competitividade. É um desserviço para o país”, diz Rodrigues.

Com longa experiência no mercado nacional de internet, Paulo Humberg, fundador dos sites Lokau, Brandsclub e ClickOn, divide seus produtos entre servidores nacionais e estrangeiros, “dependendo da necessidade”. Segundo o executivo, mesmo com o custo mais elevado, algumas aplicações rodam melhor quando hospedadas no país. “Como o centro de dados está mais perto, a latência é menor. Para negócios que consideram milissegundos importantes, o melhor é hospedar no país. Mas essa é a essência da rede, a liberdade de escolher”, critica Humberg.

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Sérgio Matsuura, do Globo