Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Respeito à biografia de Mario Quintana

Impõe-se, por questão de justiça, a contestação pública de uma ofensa perpetrada contra a biografia e a memória de Mario Quintana. A afronta foi cometida por um doutor em Literatura e, lamentavelmente, contou com a conivência da intelectualidade gaúcha, que se omitiu e silenciou diante do fato.

Com todos os méritos do título, o doutor em questão é o professor Luís Augusto Fischer. Em declaração de rara infelicidade, em entrevista concedida ao caderno Cultura de Zero Hora de 12 de outubro passado, na condição de patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, que se iniciaria a 1º de novembro, ele disse que Erico Verissimo, Cyro Martins e Dyonélio Machado não eram habitués da Feira e que Quintana a frequentava “porque ele nos últimos anos era um velhinho folclórico, e havia trabalhado ali no Correio do Povo, morava no Centro…” Fischer, nessa sua resposta a ZH, sustenta que “a intelectualidade”, “os escritores mesmo”, como o triunvirato citado, não eram atraídos pela Feira, que reunia “jornalistas, professores”.

Referir-se a Mario Quintana como um “velhinho folclórico” é revelar um juízo distorcido da figura do poeta, além de menosprezar e desrespeitar sua história de vida. Imaginei que o disparate seria alvo de imediata refutação por algum integrante da intelectualidade, mas nenhuma voz se levantou por Quintana que, morto em 1994, aos 87 anos, não pode se defender.

Poeta e tradutor

Tentei expressar em Zero Hora, por meio de artigo, o sentimento de repulsa que manifesto aqui, mas a contradita não foi acolhida pelo jornal que veiculou a gafe. Além da busca do desagravo, creio que o reparo se impõe, entre outras razões, para que a opinião de Fischer não transite como uma verdade inconteste e eventualmente seja absorvida por um desavisado pesquisador do mundo acadêmico. Afinal, a pecha foi lançada por um especialista.

Por ironia, não houve escritor mais identificado com a Feira do Livro do que Mario Quintana, que viveu com graça, encantamento, simplicidade e dignidade. Não por acaso, ele está eternizado em bronze na Praça da Alfândega, centro de Porto Alegre, ao lado da estátua de Drummond. Dois gigantes. Patrono da Feira em 1985, Quintana foi sempre uma espécie de atração extra do evento, caminhando entre as bancas ou sentado num dos bancos da praça. Não são poucas as pessoas que guardam com imenso carinho um livro autografado por ele, com dedicatórias poéticas e bem-humoradas.

Certamente, Quintana frequentou a Feira, criada em 1955 – quando Fischer ainda não havia nascido –, desde sempre. Na primeira edição, o poeta tinha 49 anos e já trabalhava havia dois anos no Correio do Povo. O evento concentrava três de suas paixões: a rua (“Olho o mapa da cidade como quem examinasse a anatomia de um corpo…”), a praça e a literatura. Não é demais lembrar que, além de consagrar-se na arte da poesia, ele marcou no país como tradutor, vertendo, para a lendária Editora Globo, nomes como Marcel Proust, Virginia Woolf, Aldous Huxley, Guy de Maupassant.

A que atribuir o deslize que sugere a existência de um Quintana inconsequente, vazio, indigno de ser levado a sério quando “velhinho”, pois, afinal, são essas as características de um sujeito dito “folclórico”? Para deixar barato, digamos que ao paradoxo, uma vez que na sua atividade Fischer mostra zelo pelas coisas de valor do passado, sendo um profundo e respeitado estudioso da obra de Simões Lopes Neto, um dos maiores nomes da literatura rio-grandense, por exemplo.

Até por essa razão é que o epíteto aplicado ao poeta choca e causa perplexidade. Mario Quintana, um “velhinho folclórico”?! Por favor, professor…

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Carlos Alberto de Souza é jornalista, Porto Alegre, RS