Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Espionagem digital é legal?

O que é espionagem digital afinal? O que mudou no mundo da espionagem desde o episódio do Garganta Profunda, fonte secreta do Washington Post sobre o escândalo do Watergate e mais recentemente do caso Julian Assange e do Edward Snowden? E no âmbito empresarial, que vai de casos como de Madame Coco Chanel à Petrobras?

Tomar conhecimento de uma informação sigilosa obtida de forma privilegiada seria o conceito básico de espionagem. Em seguida, surge a relação de interesse sobre a informação, para quem a mesma possa agregar valor, se tornar um conhecimento. Por isso que, hoje, a espionagem vem muitas vezes abraçada com o conceito de vazamento de informação, que significa revelar para terceiro não autorizado uma informação sigilosa obtida de forma legítima ou clandestina mas sem a ciência do proprietário da mesma que ela seria compartilhada com outros ou tornada pública.

Apesar do dano que a espionagem pode gerar, claro que há casos excepcionais em que os fins justificam os meios, e que, se não fosse a espionagem, não teria como as pessoas saberem a verdade dos fatos.

Logo, conforme os manuais militares, espionar envolve diretamente um serviço de inteligênica. Ou seja, de obtenção de informação. E se proteger contra espionagem envolve um serviço de contra-inteligência, ou seja, de segurança da informação. E um não existe sem o outro. Isso mostra que praticamente estamos o tempo todo na Sociedade do Conhecimento ou espionando ou sendo espionados. É bem difícil manter uma posição totalmente neutra.

Sendo assim, se espionagem é uma técnica, um modus operandi, que hoje tem cada vez mais ferramentas tecnológicas para ser executada, ela representa poder e pode determinar o domínio político ou econômico de uma instituição sobre outra (no caso de espionagem industrial ou comercial) ou mesmo de um país sobre o outro, podendo chegar a gerar no último caso a uma guerra digital, que é a guerra dos dados.

Todos contra todos

Segundo relatório do FBI, quanto mais conectados estamos, maior a possibilidade de estarmos sendo espionados eletronicamente, o que é facilitado pela falta de hábito de segurança digital em um nível endêmico-cultural.

Dito isso, quando um ato de espionagem entre países seria legítimo? Haveria uma forma tornar a espionagem legal? Vide os casos recentes envolvendo Alemanha, China, Estônia, Nova Zelândia, Austrália, Índia, Irã, Iraque, Rússia, como fica a legislação não apenas de cada país, mas em nível global?

Vejamos o efeito 11/9 que gerou o Patriot Act nos EUA, em que a seção 215 dá poder jurídico para a Autoridade Americana usar qualquer meio que a permita ter acesso ilimitado a uma informação que possa contribuir com a proteção ou segurança nacional dos EUA. Em outras palavras, dá carta branca para olhar qualquer tráfego de dados que possa ser relevante em uma investigação para combate a ameaças à segurança nacional (que traduzimos hoje em combate ao terrorismo).

O que isso significa para os demais países, mesmo os aliados? Que foi feito através do Congresso Americano (legislativo) uma espécie de cheque em branco que diz que quase tudo que for contra os EUA é terrorismo. No Brasil não temos nada que se assemelhe ou se equipare a isso, ainda.

Bem, em qualquer momento da história humana é e sempre foi muito perigoso o uso de institutos como o do flagrante preparado, da interceptação ou mesmo da tortura, sob a justificativa de se dar maior segurança à coletividade, se isso não for muito bem acompanhado do devido processo legal para que não haja arbitrariedade da autoridade nem abuso de poder.

No âmbito privado, as leis hoje protegem melhor as empresas contra a espionagem. Temos previsão legal de vários crimes, da revelação de segredo pelo artigo 154 do Código Penal, o novo artigo 154-A (trazido pela Lei 12.737/2012 mais conhecida como Lei “Carolina Dieckmann”, que mostra que foi o uso de informação não autorizada de celebridade – ente privado – que fez a Lei de Crimes Digitais andar no Brasil e não os ataques aos sites de Governo praticados ano antes pelo Grupo Anonimous), ao crime de interceptação previsto na Lei 9.296/96.

No entanto, no âmbito público, especialmente entre países, há uma carência de definição de regras claras, de como será este jogo político internacional, global, sem fronteiras claras. Afinal, não se espiona mais o inimigo, mas sim qualquer um, em qualquer lugar, a qualquer momento, se houver interesse para tanto, ou com o poder do big data, basta haver poder de processamento para tanto.

Hoje, pode-se apenas varrer internet e as redes sociais para se descobrir segredos industriais, por exemplo. Muitas vezes isso nem configura ato de espionagem pois o mesmo presume que a informação tenha que estar protegida, como não é possível o crime de invasão se a porta estiver aberta. Se as pessoas publicam tudo e qualquer coisa, inclusive sobre sua rotina, horário, trajetos, projetos, trabalho e até sobre outras pessoas, basta alguém estar olhando para descobrir.

Por certo o que mudou foi que acabou o glamour. De uma navegação no Facebook ao uso de um sniffer para buscar dados em maquina alheia, banalizamos não apenas a espionagem mas a própria informação. O melhor combate a espionagem hoje envolve educação em segurança da informação. Claro, faz-se essencial celebrar um tratado internacional entre os países da arena política/econômica mundial atual para que sejam definidas as novas regras do jogo. Desde o fim da URSS e queda do muro de Berlim, não recombinamos o jogo, e agora todo mundo joga contra todo mundo, e caiu na rede é peixe!

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Patricia Peck Pinheiro é advogada especialista em cultura digital e inovação, autora de 14 livros sobre “Direito Digital”