Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O caminho do cinegrafista Santiago Andrade

Em meio aos assuntos e acontecimentos cada vez mais tensos e polarizados que têm colocado o senso de opinião do brasileiro para funcionar no modo 24h/24h nos últimos meses, tenho preferido esperar um pouco antes de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Leituras dos fatos apaixonadas, no calor do primeiro beijo, correm grande risco de ser frágeis e rasas, simplesmente apaixonadas. Por isso mesmo preferi esperar – ler, ouvir e refletir – antes de escrever sobre o caso do cinegrafista Santiago Andrade, morto em um protesto no Rio de Janeiro, após ser atingido por um rojão disparado por um manifestante.

Li dezenas de textos, mensagens indignadas no Facebook, fotos de redações inteiras fantasiadas de black blocks do bem (sic) para demonstrar luto (sic), editoriais, longas reportagens. Se não fosse sobre uma tragédia, eu diria até que foi a redenção da função de repórter cinematográfico, o herói de todas as edições dos telejornais, o cara que ninguém vê nem presta atenção em seu nome nos créditos, mas que sofre o diabo para conseguir a melhor imagem, para conseguir, de fato, a notícia.

Em praticamente todos os veículos dos grandes conglomerados o assunto foi manchete durante quase uma semana, do editorial de indignação ao tempo real da caça aos culpados. Surgiram fatos novos, documentos exclusivos, declarações bombásticas, grandes esquemas de contrabando de lanche para manifestantes, informações em off obtidas com grampos em telefones sem fio.

O Globo resolveu que Marcelo Freixo é o grande líder por trás dos tumultos. Depois de descobrir que – ao contrário do que William Bonner afirmou em editorial sobre o caso (ver aqui) – as pessoas não precisam do jornalismo profissional para entender o que acontece no mundo, baixou o tom. Mas não retirou o que disse. Apenas justificou, dizendo que não poderia sonegar uma informação (sic) tão grave. Tudo bem. Cada veículo escolhe o que lhe é ou não importante. Mas nas redações por onde passei, nenhum editor responsável com os quais trabalhei me mandaria publicar uma notícia com base na declaração que o estagiário de um advogado de milicianos recebeu de alguém e teria repassado a outro alguém por telefone.

Realismo fantástico

Tudo cortina de fumaça. Uma volta gigantesca para que você saia da estrada e não encontre o caminho. Quase um enredo de Paulo Coelho. Quando Santiago morreu, foi mais uma ferida exposta na pele de um sistema que não tem muito apreço por quem trabalha para manter seus lucros. Há exceções (e é preciso dizer que a Globo é uma delas, até mesmo por seu tamanho e poder), mas na maioria dos casos o trabalho do jornalista – principalmente do repórter, o cara que vai para a rua – é insalubre e mal remunerado. Santiago estava no meio da praça, totalmente exposto, sem capacete, sem colete, sem nada. Um alvo fácil para os manifestantes estúpidos que acham que matar um jornalista vai destruir o sistema tal qual a polícia acha que matar usuário de droga e prender aviãozinho vai exterminar o tráfico.

Santiago sabia de tudo isso. “Meu nome é Vanessa Andrade, tenho 29 anos e acabo de perder meu pai. Quando decidi ser jornalista, aos 16, ele quase caiu duro. Disse que era profissão ingrata, salário baixo e muita ralação”, disse a filha dele, em uma carta publicada no Facebook. Santiago não foi o primeiro que o sistema matou. Na verdade, não foi nem mesmo o primeiro assassinato da Band (ver aqui).

Saímos em busca do grande segredo de Santiago, mas ele estava bem em baixo do nosso nariz o tempo todo. Não foi Freixo. Não foi ninguém. Foi um monstro invisível que às vezes nem os inteligentes veem. O que você leu e ouviu por aí não tem mais a ver com jornalismo. É realismo fantástico de autoajuda.

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Simão Mairins é jornalista, João Pessoa, PB