Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Crime que compensa

“Desta forma, essas pessoas continuam pensando que o crime vale a pena. As pessoas agem sem o menor temor às leis.” A frase é do secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, (Extra, 21/3/2014) mas evidencia o pensamento de boa parte da população brasileira e, mais especificamente, do eixo Rio-São Paulo. Influenciada pelo discurso da grande mídia de criminalização da pobreza e dos negros, a classe média acostumada a um pensamento eles x nós está preocupada com a possibilidade de suas fortalezas virem a ruir. E há um bom tempo está.

Ameaçada por uma violência – mas o que é a violência, afinal? – que parece estar em todos os lugares sem ninguém saber explicar direito o que significa, o sentimento de autoproteção ganha ênfase em meio à discussão da maioridade penal. E enquanto esta não avança pela lei, parece ganhar apoio do Estado. Ao menos, pela voz de Beltrame.

Repensar o controle das fronteiras, o sistema penal, o sistema prisional. Parece até que é para assumir que existem problemas de excessos, de lotações, de quebra de direitos humanos dentro e fora das celas. E das favelas. Mas não. O braço armado do Estado precisa ficar mais forte. Como se as balas, as agressões e os assassinatos cometidos por uma polícia militarizada presente na favela não fossem suficientes. E, de fato, não são. Enquanto estudiosos defendem uma reforma de base educacional e cultural, Beltrame quer um Estado mais forte. Uma polícia mais forte. Para ele, o crime parece compensar. Para outros, virar criminoso foi consequência de uma vida sem direitos básicos – e que deveriam ser garantidos pelo mesmo governo. Seria o Estado uma grande fábrica de criminosos?

Uma reforma que pune mais ainda

E o problema vai além. Quem são os criminosos? Os negros? Os pobres? Ou estes também, junto com os moradores do Leblon que vestiram a fantasia do justiceiro e se deram o direito de amarrar um jovem no poste e ganhar aplausos dos reacionários? Há um criminoso maior? Ou, além, quem pariu o criminoso? Ninguém parece saber, mas existem os que querem que você ou qualquer um de nós faça parte do grupo dos “defensores dos direitos humanos” (sic) o adote. Que o diga Rachel Sheherazade, âncora do SBT Brasil, exalando conservadorismo em horário nobre. Mesmo que infratores, é preciso notar que a partir do momento em que se amarra uma pessoa em um poste e a tortura, um novo crime se faz.

Desde 2013, com o caso do turista alemão baleado na Rocinha, o governo do Rio de Janeiro tenta levar a âmbito nacional essa questão. Nesse caso, um menor teria assumido o crime para que o verdadeiro criminoso não sofresse a pena mais severa – versão dada pela polícia (O Dia, 2/6/2013). Mas, afinal, essa realmente é a solução para todos os problemas de violência? Empurrar esse jovem que foi corrompido para a cadeia vai mudar o que? Esse é apenas um dos milhares de casos em que jovens menores de idade estão envolvidos. Mandar todos esses que se envolveram de alguma forma com o crime para a cadeia elimina a violência atual? A questão está muito mais embaixo.

As cadeias estão superlotadas, com condições sub-humanas. As casas de reabilitação, igualmente. Não existe, categoricamente, reabilitação. Não se reintroduz pessoas à sociedade – que, aliás, muitas vezes nunca estiveram inseridas nela. Como essas pessoas – sim, são pessoas, ainda que muitos pensem o contrário – não entram num sistema do crime se na própria cadeia funciona uma rede enorme de influências? O sistema carcerário não funciona. Essa é a realidade. Beltrame propõe uma reforma. Mas uma reforma que pune mais ainda – será que o governo está satisfeito com a atual situação das prisões e violência do estado?

Uma vida inteira não é suficiente

E além disso, o sistema pune os que desviam da curva. Os que ameaçam “cidadãos de bem” (sic). Os que supostamente deveriam ser donos das chaves das prisões e terem permissão prévia para trancá-las e jogar a chave fora. Como se, assim, se limpasse toda a sujeira da cidade. E isso sem falar dos que, como se os delitos que os “inseridos” – aliás, os que não estão inseridos vêm de onde? – cometem fossem menores, pagam cestas. Quem tem dinheiro para fiança pode comprar a própria chave. Pode?

“Essas pessoas” continuam pensando que o crime vale a pena. Somente essas. Enquanto isso – ah, mas que absurdo! – os civis não podem ter armas militares. De fato, todo o problema da violência pública – e mais especificamente dos ataques às UPPs – deve ser causado por civis armados.

Ninguém está defendendo que os civis andem armados (o que, aliás, é proibido por lei, a menos que se tenha registro e porte de arma de fogo), mas é fundamental perceber que a causa do que Beltrame chama de “violência urbana” não é essa. O secretário também afirma que se não discutirmos tudo isso de forma ampla, “vamos passar a vida inteira resolvendo crises e não resolvendo o problema de segurança pública”. É tanta coisa para discutir que é fácil se perder. E uma vida inteira não é suficiente para resolver qualquer um deles.

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Felipe Magalhães e Lucas Farizel são estudantes de Jornalismo