Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma realidade invisível

Um fato chamou atenção este ano: a escolha do tema “Tráfico Humano” para a Campanha da Fraternidade da Igreja Católica. A verdade é que esta parecia ser uma realidade distante do brasileiro, no entanto, um dado preocupante é que o Brasil é o país com maior número de vítimas de redes de exploração sexual em todo o continente americano. O tráfico humano para este fim é a terceira maior fonte de renda ilegal do mundo. Segundo relatório do Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal (SI-NESPJC) da Polícia Militar houve 1.735 vítimas de tráfico interno de pessoas para fins de exploração sexual, entre 2006 e 2011.

Além da prostituição, os crimes incluem trabalho escravo, servidão doméstica de crianças e adolescentes, exploração para clubes de futebol e da mendicância. Dentre as principais vítimas estão jovens em situação de grande vulnerabilidade, cujo acesso à educação e às condições dignas de sobrevivência é precário. Muitos deles são aliciados, seduzidos pela possibilidade de melhorar de vida.

A identificação desses casos ainda é difícil. O medo que as vítimas sentem de fugir ou de denunciar o que está acontecendo são as principais razões para que o número total seja desconhecido. O registro do tráfico também é dificultado pela própria legislação penal, que é inadequada, pois prevê somente o tráfico para fins de exploração sexual, deixando a margem do sistema outras modalidades. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, definiu o crime como “subterrâneo” por conta da falta de registros junto aos órgãos policiais. Segundo ele, existe uma cultura permissiva que legitima a consumação do tráfico e a falta de números dificulta uma investigação eficiente e o combate efetivo. A escassez de informações também se reflete na cobertura midiática.

Recursos para políticas específicas

O tema é pouco noticiado pelos grandes veículos de comunicação, que quando tratam do assunto, direcionam sua abordagem majoritariamente aos casos de exploração infantil e prostituição de mulheres. Uma pesquisa realizada pela Uncief analisou 40 artigos publicados pela imprensa e constatou que não houve o devido cuidado com a preservação da identidade das vítimas. Esta pode ser uma das causas para a falta de denúncias, já que os criminosos tornam-se uma ameaça para as pessoas que têm seu nome divulgado. Apenas um dos artigos procurou discutir as eventuais causas do incidente, fazendo referência aos problemas sociais das vítimas. Além disso, o estudo demonstrou que a maioria dos artigos não abordou os possíveis impactos desta ocorrência para as vítimas sob o ponto de vista psicológico, nem mencionou as campanhas já realizadas de combate ao tráfico de pessoas.

Em 2008, estabeleceu-se no Brasil o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (disponível no site do Ministério da Justiça). Tal política pública busca a prevenção e repressão à prática, além do apoio e atendimento às vítimas. O tráfico de pessoas nunca foi considerado um problema de governo no Brasil, até que a Organização dos Estados Americanos encomendou uma pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração no Brasil (Pestraf) que evidenciou a existência deste problema em todo território brasileiro.

Pode-se dizer que há uma íntima relação entre a existência do tráfico de pessoas e o modelo de desenvolvimento do país. O investimento em atividades econômicas que não visam a melhoria de vida da população local, e cujos lucros e ganhos são para terceiros abre caminho para o crescimento da prática. Estes por sua vez provocam e precisam do trabalho temporário e de migrantes, que não investe no recrutamento ordenado e na formação de mão de obra local. Torna-se um círculo vicioso.

A “Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas”, suas diretrizes e conteúdo mostrou, pela primeira vez, um caminho para uma política nacional de enfrentamento do tráfico de pessoas independente e pautada na garantia dos direitos humanos, além de envolver um grande número de secretarias e ministérios. Agora o desafio é: inserir esta discussão no âmbito das políticas econômicas e garantir recursos significativos para as políticas específicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas, assegurando a participação da sociedade civil, para que as medidas contra tráfico não continuem tendo efeitos negativos para pessoas as quais pretende proteger.

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Gustavo Xavier e Paula Rodrigues são estudantes, Niterói, RJ