Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Situação dos jornalistas no Brasil causa apreensão

Fui convidado para estar em Londres, no dia 7 do mês passado, para ser um dos palestrantes no simpósio “Fazer da proteção dos jornalistas uma realidade: por um fim à impunidade”, promovido pela BBC Notícias Globais e BBC Faculdade de Jornalismo. O encontro foi motivado pelo crescimento, em muitas partes do mundo, da violência contra os jornalistas numa escala sem precedentes, sem que a justice sirva de anteparo a essas violências.

A BBC reuniu formadores de opinião, como novos executives, editors e jornalistas proeminentes – e representantes da ONU e da Corte Criminal Internacional e diversos dovernos para, em conjunto, procurarem soluções para o problema. O foco foram países considerados chaves, como Egito, Turquia, Brasil e Paquistão. Meu nome foi recomendado para tartar da questão brasileira.

Não podendo ir a Londres, mandei o texto a seguir, que foi lido na ocasião. (L.F.P.)

País republicano tardio, o mais atrasado da América Latina, o Brasil viveu poucos momentos contínuos de democracia desde o fim da sua monarquia, em 1989. Nenhum desses momentos foi de plenitude democrática, segundo os padrões ocidentais. Nasci quando nossa frágil democracia estava tentando se recuperar da mais longa ditadura instalada até então, entre 1937 e 1945. Ingressei no jornalismo profissional quando essa democracia tinha sido suprimida pelo golpe militar de 1964.

Como era da tradição desses putsche, os militares que destronaram o presidente constitucional, João Goulart, meio século atrás, ainda estavam impregnados da mecânica desses pronunciamientos latino-americanos: feita a “limpeza” dos civis considerados corruptos e subversivos, aos sobreviventes dessa carta era devolvido o poder para a continuidade da democracia relativa – relativa à sua confirmação pelos militares. Por isso, uma vez passada a onda de repressão e violência contra os inimigos do novo regime, uma margem de liberdade de expressão foi consentida e as críticas se ampliaram e se aprofundaram, inclusive através de uma imprensa de oposição.

Um grupo dos chefes militares não concordou e resolveu manter desta vez o controle do país sob mão forte. Cinco generais se sucederam na presidência da república ao longo da ditadura militar, que durou 21 anos e certamente superou os oito anos do Estado Novo de Getúlio Vargas, um civil sob tutela militar. Não só por ter durado mais tempo como por haver enfrentado a resistência armada de alguns grupos de esquerda.

Toda a grande imprensa, com exceção do jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, o único a apoiar Goulart, endossaram o golpe e até dele participaram ativamente. Também agiam na presunção de que os militares logo devolveriam o poder aos civis. Em 1965 o candidato da maioria da mídia, o ex-presidente Juscelino Kubitscheck, retornaria ao cargo, nas eleições já programadas.

Mas o enredo mudou e os barões da imprensa tiveram que se adaptar a ele. Muitos simplesmente se acomodaram à liderança dos militares. Uns poucos rejeitaram o novo regime. Dentre eles, o mais destacado na oposição foi justamente o mais comprometido com a conspiração: O Estado de S. Paulo. Dos principais jornais do país, foi o que sofreu intervenção direta do governo, que colocou um censor na redação para expurgar o noticiário considerado inconveniente ou impróprio.

A convivência de jornalistas com um censor estatal dentro da redação é uma das piores experiências que um profissional da imprensa pode ter. Ali está materializado o abuso de poder, a boçalidade e a arrogância por parte de quem se julga acima de tudo. A supressão de textos produzidos depois de um longo, difícil e dispendioso processo de apuração e redação é um ato de volúpia que chega a guardar comparação com a tortura física, que muitos dos perseguidos pelo regime sofreram.

Há, porém, um outro lado da questão: o jornalista se distingue do censor, o inimigo está do outro lado – e deve ser tratado como inimigo. Essa clara e extremada separação de corpos leva à formação de um campo coeso daqueles que não aceitam a violência do controle da informação, sejam patrões ou empregados, esquerda ou direita. A história da guerra travada na redação de O Estado de S. Paulo contra a censura militar, geralmente exercida por um civil, está para ser escrita. É pena que permaneça pouco conhecida. O aprendizado, por ser penoso, é por isso mesmo extremamente valioso para a democracia.

Uma vez restabelecida a democracia, em 1985, imaginou-se que essa guerra de resistência se tornaria desnecessária. A liberdade tutelada pela constituição de 1988 permitia tudo informar e debater, sem qualquer entrave. A imprensa alternativa, que germinara durante a ditadura como uma válvula de escape ao controle estatal, perderia a sua razão de ser. O povo estaria mais bem esclarecido para tomar as decisões necessárias ao avanço do processo civilizatório no Brasil.

Todos pensavam assim, inclusive eu, em 1987, quando decidi lançar um novo jornal alternativo – e o mais radical da minha carreir5a profissional de 21 anos, até aquele momento. Para custar o mínimo possível e sobreviver às agruras do tempo, esse Jornal Pessoal teria apenas um membro, eu mesmo. Seria em formato pequeno, sem cor, sem fotografias e sem publicidade. Se o anúncio é a principal fonte de uma grande empresa jornalística, é um fator de limitação para ela e para as pequenas publicações. O espaço pago por anunciantes costuma funcionar como moeda de troca, gerando uma relação promíscua ou mesmo uma parceria, em sacrifício da verdade.

Criei esse jornal para poder divulgar matéria sobre um crime político, de um cidadão que fora o primeiro advogado de posseiros nos sangrentos conflitos de terras com fazendeiros no sul do Pará, uma das regiões mais violentas do Brasil. A grande imprensa não queria essa reportagem porque ela apontava gente poderosa como integrante do consórcio criminoso. Mas achei que o jornal teria vida efêmera. Os brasileiros tinham liberdade como nunca antes.

Aos poucos, porém, constatei que determinadas informações, temas ou perspectivas só apareciam no meu jornal. Não era porque eu fosse especialmente competente. Era simplesmente porque a grande imprensa se recusava a tratar dessas questões. Era a atitude editorial da corporação, mas secundada pelos jornalistas. Crescia a quantidade dos profissionais que faziam autocensura por deliberação própria, sem compromisso com seus empregadores.

Essa tendência se intensificou porque algumas empresas passaram a exigir que seus principais jornalistas criassem empresas individuais. A relação passaria a ser entre empresas, ao invés da situação dominante até então: a empresa contratando a pessoa física do profissional. Tornando-se responsável por uma empresa individual, ao jornalista foram transferidos alguns encargos, como o trabalhista e previdenciário.

Precisando que arcar com custos, o jornalista se tornou mais cauteloso e, em muitos, a cautela se tornou covardia. Não queriam mais correr riscos, enfrentar poderosos. Havia também um estímulo a essa atitude pelos meus contratantes, que promoviam esses profissionais, com ênfase nos de maior receita e poder, os das emissoras de televisão. Graças a essa notoriedade, tais jornalistas passaram a fazer palestras em circuito fechado, recebendo honorários crescentes. A informação, que antes era entregue ao público, se tornou privilégio dos frequentadores dessas palestras, capazes de pagar alto para receber essas informações.

Tendo feito a opção radical pela pobreza, já que sua receita é proveniente da venda avulsa dos seus exemplares, meu jornal teve que subsistir desde então, por quase 27 anos, para que elementos da história da Amazônia e, em boa medida, do Brasil, não fossem simplesmente expurgados de qualquer registro impresso. Para que sua pobreza material pudesse ser compensada, de tal forma a continuar a atrair o leitor mais interessado pela história do dia a dia, o jornal se empenha em apurar da maneira mais completa e profunda tudo que publica. Essa diretriz assegurou sua credibilidade, inversamente proporcional à sua expressão física: tamanho pequeno, forma quase artesanal, tiragem de dois mil exemplares, venda apenas em bancas de rua.

Tornando-se fonte de referência, o jornal atraiu a reação daqueles que estão na mira do jornalismo quando ele desempenha a sua mais nobre função: auditar o poder, exercer a vigilância crítica, expressar o interesse público. A partir de 1992, 33 processos foram ajuizados contra mim, 19 deles pelos donos do maior grupo de comunicação da Amazônia, algo – presumo eu – singular na história da imprensa mundial: um jornal a perseguir sistematicamente na justiça um jornalista. O maior de todos os grileiros de terras da história da humanidade também moveu ação contra mim, assim como madeireiro e desembargadores associados a esse esquema de apropriação ilícita de terras públicas.

Como se tornou marca registrada do meu jornal, sua credibilidade não era atacada porque as matérias consideradas ofensivas a esses personagens continham fatos inquestionáveis, extraídos de boa fonte, geralmente oficial. A trama tinha o propósito de me enredar nas teias do poder judiciário, como um personagem ainda mais agoniada do que aquele criado por Franz Kafka em O Processo. A realidade, mais uma vez, excedeu em surrealismo a criação ficcional.

Como eu não conseguia advogado para contestar esses poderosos, acabei tendo que me dedicar à minha defesa, o que resultou em perda de tempo antes dedicado à apuração jornalística. A intenção era exatamente essa: prejudicar a qualidade do meu jornal e, nessa progressão, levá-lo à exaustão e ao fim. Felizmente, a muito custo, esse propósito continua irrealizado. Mas a justiça, o menos democrático de todos os poderes da república brasileiro, tem sido parceira eficiente daqueles que, em plena democracia, querem intimidar, cercear e eliminar a imprensa independente no Brasil. De vez quando, eliminando o próprio jornalista, processado e agredido fisicamente, como já fui, e, em momentos extremos que se amiúdam, assassinado.

Para que isso não aconteça e o Brasil não passe por um processo que tem alguma coisa a ver com a República de Weimar, que antecedeu o nazismo na Alemanha, é que mando esta minha mensagem aos senhores, na esperança se sensibilizá-los e mobilizá-los para a condição especial e preocupante do Brasil deste nosso tempo.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)