Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um processo de causa e efeito

A Lei diz: toda causa tem seu efeito; todo o efeito tem sua causa; todas as coisas acontecem de acordo com a Lei: o acaso é simplesmente um nome dado a uma Lei não reconhecida. “Existem muitos planos de causalidade, mas nada escapa à Lei” (O caibalion, estudo da filosofia hermética).

Descartes afirmou que “não há nenhuma coisa existente da qual não se possa perguntar qual é a causa”. Após o linchamento de uma mulher no Guarujá (SP), que foi confundida com uma sequestradora de crianças, Ricardo Boechat reacendeu a chama da discussão sobre o comportamento da âncora do SBT, Rachel Sheherazade. Um site de notícias divulgou o seguinte comentário de Boechat: “Esse crime aí, minha gente, tem tanta responsabilidade, o autor do boato espalhado pela internet, no Guarujá Alerta, quanto pessoas que, mesmo em emissoras de televisão, estimulam a cultura da justiça com as próprias mãos. Isso está dentro do mesmo panorama, que propicia, estimula, que justifica o linchamento. É hora dessas pessoas, agora, virem a público [e dizerem] como se sentem depois da consumação de sua própria teoria, na prática.” A vítima do linchamento era a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, mãe de duas filhas.

Os ácidos comentários contra a jornalista Rachel Sheherazade, que defendeu o ataque a um garoto negro acusado de praticar furtos no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, ficaram famosos nas redes sociais. Contudo, encontramos ainda uma minoria que teve coragem de expor opinião favorável à atitude da jornalista. Talvez a mesma coragem que a jornalista teve ao fazer seu discurso do ódio, mesmo ciente de sua condição de formadora de opinião. Ela poderia lembrar-se que os canais de rádio e TV não são propriedade privada, e sim, concessões públicas que não podem funcionar à revelia das leis. O seu desabafo violou os Direitos Humanos e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Gladiadores da comunicação

No entanto, não podemos creditar toda essa agressividade social à âncora do SBT. É fato que ninguém aguenta mais conviver com tanta violência. Os programas policialescos e seus conteúdos apelativos também têm sua parcela de culpa. Esses programas se intitulam como espaço de utilidade pública, porém transmitem somente o “espetáculo da violência” e reproduzem o imaginário do medo entre os telespectadores. Não é a toa que José Luiz Datena saiu em defesa da colega e criticou a censura feita aos jornalistas pelos parlamentares que ameaçaram cortar R$ 150 milhões de reais de publicidade federal destinados ao SBT. Segundo Datena, ele próprio foi o causador de um corte na verba publicitária na emissora onde trabalha por causa de comentários contra o aumento do IPTU no governo Haddad, do PT.

Alguns profissionais da comunicação acreditam que as notícias devem ser veiculadas de forma “objetiva” e sonham com a antiga teoria do espelho, inspirada no positivismo do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857). A teoria defende a ideia de objetividade no jornalismo. Essa corrente vê o jornalista como um comunicador desinteressado e que conta a verdade sempre, “doa a quem doer”.

O comentário feito por Ricardo Boechat sobre o linchamento da dona de casa acabou sendo uma indireta para a jornalista Rachel Sheherazade, porém o próprio Boechat protagonizou em 2013 um fato que teve sua imagem manchada. O jornalista ficou famoso ao aparecer em um vídeo em redes sociais, afirmando ser favorável às manifestações e quebra-quebra nas ruas e, posteriormente, um desses ataques vitimou seu próprio colega de trabalho, o cinegrafista Santiago Andrade.

A prática jornalística está intimamente ligada à crença no interesse público. A partir de então, levanta-se a discussão da ética jornalística na construção de matérias e propagação da informação. Alguns jornalistas possuem uma certa autoridade cultural, porém essa autoridade não pode ser revertida a seu favor, ela deve ser utilizada com cautela. A partir do momento em que o profissional assume a responsabilidade pela reprodução de determinada ideologia, ele deve responder diretamente pelo processo do qual faz parte, ou seja, a simples ação do jornalista já interfere na interpretação do fato.

Antes de se digladiarem em público, esses experientes jornalistas deveriam lembrar-se da frase de Claudio Abramo: “O jornalismo é, antes de tudo, e sobretudo, a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter.”

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Carlos Alberto Martins Netto é professor e membro do GCom Grupo de Desenvolvimento e Gestão de Projetos em Comunicação/ECA/USP