Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Decisão da Arquidiocese causa indignação

Todo carioca, e mesmo o turista, está acostumado com Ele no alto do Corcovado. O Cristo Redentor está nos postais, nas cangas de praia, nos chinelos de dedo, por toda a parte. Símbolo maior da cidade, uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno e parte inexorável da geografia escolhida como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, o monumento, contudo, não pôde aparecer no episódio “Inútil paisagem”, do cineasta José Padilha, parte do filme “Rio, eu te amo”. A Arquidiocese do Rio vetou o uso da imagem na história, onde o ator Wagner Moura dialoga com a estátua, por considerar que “o filme atentaria contra a fé católica”. A decisão provocou, nesta terça-feira, uma avalanche de críticas de autoridades, artistas, representantes da indústria de turismo e de entidades da sociedade civil, que enxergaram na proibição uma censura à produção cultural.

Entre os que questionam o veto, o prefeito Eduardo Paes disse que vai conversar com Padilha para saber sobre as razões alegadas pela Igreja. Paes afirmou que, eventualmente, vai intervir junto ao arcebispo do Rio, cardeal dom Orani Tempesta:

– Não é possível que haja esse veto ou censura. O Cristo é um patrimônio da Arquidiocese, mas é um ícone do Brasil e do Rio. Não pode haver exagero. Tudo tem limite.

O presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis no Rio (ABIH-RJ), Alfredo Lopes, vai enviar carta a dom Orani, pedindo que o cardeal reconsidere o veto. Para Lopes, a imagem do Cristo não pode ser dissociada da cidade:

– O Cristo é um ícone da cidade, por sua beleza e seu apelo religioso. Não se fala no Rio sem se remeter ao Redentor.

Lopes defende que, mesmo que o texto do filme seja considerado negativo na esfera religiosa, ele não deveria ter peso para vetar parte de uma obra cultural. Ele afirma que esse juízo de valor deveria ser feito pelo espectador e não, por antecipação, pela Igreja:

– Mesmo que xingasse a estátua, eu deixaria o julgamento para o espectador.

Para o cineasta Miguel Faria Jr., soa mal que, para filmar um símbolo da cidade, seja preciso pedir autorização e, muitas vezes, pagar por isso à Igreja Católica:

– O Cristo Redentor é um símbolo religioso, associado à imagem da cidade. Virou patrimônio do Rio. A Cúria tem o direito de achar o que quiser, mas vivemos num país laico.

Para cineasta, igreja age como censora

Miguel Faria Jr. diz ainda que a decisão da Igreja faz retomar a discussão sobre o direito autoral e de imagem, um assunto tão debatido há meses, quando aflorou a polêmica sobre a necessidade de as biografias serem autorizadas pelos biografados ou por suas famílias para serem publicadas:

– Estamos voltando à censura por causa de um direito abstrato. O direito autoral é inalienável. Acredito que não possa ter sido transferido pelo arquiteto que projetou e construiu o monumento do Cristo Redentor para a Igreja. Essa questão precisa ser discutida.

O cineasta observa ainda que não é primeira vez que a Igreja age com censura num filme, citando “Je vous salue, Marie”, de Jean-Luc Godard, lançado na década de 1980 e proibido em vários países.

O arquiteto e urbanista Miguel Pinto Guimarães também ficou indignado com o veto e defende que a prefeitura questione judicialmente a propriedade da Igreja sobre a estátua.

– O Cristo é da cidade. É meu, é seu, é do Zé Padilha, é do Wagner Moura, é do Joãosinho Trinta. A prefeitura e os cidadãos deveriam mover ação popular de retomada do Cristo.

O secretário estadual de Turismo, Cláudio Magnavita, sustenta que um ícone como o Cristo tem que ter um gerenciamento de imagem para evitar abusos. Mas acredita ainda num consenso:

– Dom Orani é aberto à comunicação.

O diretor do Rio Convention & Visitors Bureau, Paulo Senise, prega a criação de um código de uso da estátua, que mostre claramente as regras a serem obedecidas por produtores culturais, agentes turísticos e mídia, para evitar polêmicas:

– Sentimos falta de uma disciplina do uso da imagem do monumento.

Dom Orani não se pronunciou, mas a coordenadora-jurídica da Arquidiocese, Claudine Milione Dutra, emitiu nota. Segundo o comunicado, “a utilização da imagem do Cristo deve ser autorizada pela Arquidiocese, detentora dos direitos patrimoniais de autor sobre o monumento, que não só é um símbolo do Rio e do Brasil, mas é um santuário que comporta uma capela”. A Arquidiocese informou ter sido consultada pela produtora do episódio e respondido “ter constatado que as cenas produzidas, acaso exibidas ao público, atentariam contra a fé católica, caracterizando crime de vilipêndio, razão pela qual recomendou fortemente a exclusão da cena que considerou atentatória”. O teor das cenas, no entanto, não foi divulgado pelos produtores do filme nem pela Arquidiocese.

Padre acha que limites devem ser respeitados

O padre Jesús Hortal Sánchez, o ex-reitor da PUC-RJ – ressalvando que falava em tese, uma vez que não viu o filme e não teve acesso ao texto das cenas – considera que a liberdade de expressão não poderia transpor a barreira do respeito à religiosidade:

– Em linhas gerais, a liberdade de expressão não pode ofender o sentimento religioso das pessoas, no caso dos católicos. Eu não posso fazer um filme xingando negros. Existe um limite.

Também ressaltando que falava em tese, a professora Maria Clara Bingemer, do departamento de Teologia da PUC-RJ, afirma que o caso passa pelo respeito à religiosidade da população, independentemente do credo envolvido na polêmica.

Especialistas veem abusos da igreja

Embora a Arquidiocese do Rio tenha argumentos jurídicos para permitir ou não o uso da imagem do Cristo Redentor – possui uma escritura, na qual o construtor Heitor da Silva Costa transfere os direitos autorais à Mitra –, advogados afirmam que a questão extrapola prerrogativas legais. Alegam que o monumento passou a fazer parte da paisagem da cidade.

– Pelos dispositivos do Código Civil que tratam do direito patrimonial, a Igreja poder usar, fruir, gozar e dispor da estátua. Mas o Cristo está encravado no relevo da cidade. O seu uso deveria entrar em domínio público, desde que preservadas as regras – diz o advogado Durval Fagundes, especialista em direito de imagem.

Para Fagundes, a própria Mitra deveria criar as regras:

– O monumento é muito assediado e os critérios de censura da Arquidiocese são subjetivos, porque não estabelecem as regras para o uso da imagem. Ela deveria, então, criar os critérios.

O presidente da Comissão de Direito Autoral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), Fábio Cesnik, lembra que a Lei 9610/1998 (Lei dos Direitos Autorais) trata do direito patrimonial, que pode ser transferido, e moral, que é sempre do autor. Para obras instaladas em logradouros públicos, no entanto, a legislação permite que a imagem delas seja exibida, desde que não tenham protagonismo.

– Não sendo o filme em questão focado no Cristo, parece se tratar de um caso de limitação de direito autoral. Em tese, não haveria nem a necessidade de autorização. A única defesa, sendo cem por cento legalista, é que o local (onde está a estátua) não é um logradouro público, porque pertence à Igreja (foi cedido pela União). Mas seria um exagero. Trata-se, sim, de uma área pública, que faz parte da cidade – observa.

Especialista em direito autoral, o advogado Helder Galvão avalia como “abusiva” a posição da Arquidiocese. Segundo ele, não havia sequer necessidade de pedido de autorização:

– Há uma política de submissão. Não tem que pedir autorização. A lei já permite.

 

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‘O veto é censura, representa um enorme retrocesso’, dizem José Padilha e Wagner Moura

Carlos Helí de Almeida

 

Em entrevista por e-mail, diretor e ator comentam, em respostas escritas em conjunto, a proibição da Arquidiocese ao uso da imagem do Cristo no filme ‘Rio, eu te amo’

Vocês consideram o veto da Arquidiocese do Rio um ato de censura?

O veto é censura, representa um enorme retrocesso no que tange a liberdade de expressão no Brasil. O uso que fazemos da imagem da estátua do Cristo nem de perto se assemelha ao uso que foi feito no filme “Redentor”, de Cláudio Torres, que não sofreu censura ou mesmo gerou polêmica. Ao contrário do que ocorreu em “Redentor”, não modificamos a estátua, não a animamos, não colocamos palavras em sua boca. Por que estamos sendo censurados? Difícil dizer. Em nosso episódio, a estátua é mostrada como um símbolo da cidade, e não como símbolo religioso. Assim como se passa com todas as propagandas turísticas que mostram o Redentor. São propagandas do Rio de Janeiro, e não da religião católica. Se fôssemos produtores do filme “Rio, eu te amo” não aceitaríamos essa censura passivamente. Entraríamos na Justiça.

Chegaram a considerar a eliminação, ou a reedição, do trecho envolvendo o Cristo, para que o projeto, que prevê dez episódios, não fosse prejudicado?

A estátua do Redentor está em local proeminente na cidade do Rio de Janeiro. Aceitar que qualquer filmagem da estátua precisa de autorização da Cúria é aceitar que a Cúria detém o direito de imagem sobre grande parte da paisagem carioca. Qualquer filmagem aérea acima do Sumaré que enfoque a Lagoa ou a Baía de Guanabara enfoca o Cristo. Além disso, o Redentor é um símbolo do Rio de Janeiro, e assim foi usado em meu segmento. É totalmente absurda a ideia de que a Cúria deva ter o direito de imagem do Cristo Redentor.

Consegue enxergar algo na sequência em questão – o desabafo do personagem do Wagner na presença do Cristo Redentor – que pudesse ser considerado impróprio pela Arquidiocese carioca?

Não. Mas, como atesta a história da Igreja Católica, até dizer que o sol está no centro do sistema solar pode ser considerado crime hediondo, a ser punido com a morte na fogueira. Usar camisinha durante a epidemia de Aids, ou mesmo ser homossexual, é pecado … A Igreja Católica atual não tem grande sofisticação intelectual. O erro aqui é dar à Cúria um direito que não deveria pertencer a ela.

A Conspiração diz que seu segmento tem coisas diferentes das descritas no roteiro inicial, que algumas coisas foram mudadas e incluídas durante a filmagem e edição. Algumas delas por sugestão do próprio Wagner. A sequência “vetada” pela Arquidiocese é uma delas?

Nosso filme tem apenas uma sequência. Além disso, a improvisação e a crítica social sempre foi inerente ao nosso modo de trabalho, desde “Tropa de elite”. A Conspiração Filmes, quando nos convidou, convidou a nós como artistas – e isso inclui os nossos métodos de trabalho e enfoque político. Se não filmássemos assim, não seríamos nós mesmos. A Conspiração estava presente em todas as filmagens.

Neste momento, a Conspiração decidiu finalizar o longa-metragem com apenas nove episódios, para não comprometer os compromissos com os distribuidores estrangeiros do filme. Esperam a sua volta e a do Wagner da Colômbia para montar uma estratégia para reverter a decisão da Arquidiocese. Já tem ideia do caminho que você gostaria de tomar?

Não. Entendemos a posição da Conspiração e seus compromissos comerciais – embora, se fôssemos nós, agiríamos de maneira diferente. Todavia, temos uma chance de usar o filme para debater a liberdade de expressão no Brasil. Acho que não devemos perder esta oportunidade. Vamos conversar sobre isso com a Conspiração.

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Célia Costa, Isabela Bastos, Selma Schmidt, Taís Mendes e Carlos Helí de Almeida, do Globo