Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Palhaçada

“Cara de palhaço, roupa de palhaço, pinta de palhaço/ Foi este o meu amargo fim/ Cara de gaiato, roupa de gaiato, pinta de gaiato/ Foi o que você arranjou pra mim/ Estavas roxa por um trouxa/ Pra fazer cartaz/ Na tua lista de golpista/ Tem um bobo a mais.”

Sucesso na década de 1960, o samba-canção interpretado por Miltinho – falecido no domingo (7/9) –, e cujo nome dá título a estas mal traçadas, encarna bem a desdita que se abateu sobre o Grêmio, com a pecha de racismo transferida ao clube por conta do circo armado pelo goleiro Aranha, do Santos, no confronto entre as duas equipes pela Copa do Brasil, no último dia 28/8 em Porto Alegre. 

Entrando de palhaço numa encenação que a mídia se encarregou de espetaculizar com o histrionismo de sempre, e pego de gaiato pelos auditores do STJD na pantomima que culminou na sua inédita eliminação da Copa do Brasil, o clube gaúcho e seus mais de 6 milhões de torcedores espalhados pelo país se veem atordoados e humilhados como quem caiu num autêntico conto do vigário.

E não é para menos, pois com os inquisidores do STJD e demagogos da mídia “roxos por um trouxa pra fazer cartaz”, o Grêmio não poderia mesmo sair ileso desta lamentável história. Fosse um clube de menor expressão, um desses joguinhos inexpressivos, e barbaridades maiores poderiam acontecer sem maiores consequências, como se vê há séculos. Fosse um Corinthians ou Flamengo, as maiores torcidas do país e carros-chefe das transmissões esportivas, alguém acredita que haveria essa predisposição e pressão para tornar o caso exemplar, como aconteceu com o Grêmio?

A exemplo dos partidos hegemônicos, os grandes do eixo Rio-São Paulo têm as costas quentes junto a mídia especializada. Os jogos dos grandes paulistas são de longe os que mais registram ocorrências, tanto é que raros são os clássicos em que não há confronto entre as organizadas, muitos dos quais com consequências fatais. Ainda no último Corinthians e Palmeiras, um palmeirense foi morto a pauladas numa emboscada que teve participação do vereador e candidato a deputado estadual Raimundo Cesar Faustino, do PT. No recente clássico entre Santos e Corinthians, na Vila Belmiro, torcedores se envolveram numa grande briga nas proximidades do estádio, sem mortes desta vez, mas nem por isso os clubes foram responsabilizados.

Rótulo de Coca-Cola

Não foram e nem poderiam, já que simplesmente não há como controlar ações de marginais que se misturam às torcidas para bagunçar o coreto, com a diferença de que as brigas e rixas de hoje em dia se transferiram dos estádios para as ruas. Por um motivo muito simples: a vigilância nos estádios tornou-se implacável e praticamente nada escapa das câmeras de TV e sistemas de monitoramento. Mesmo o simples arremesso de inofensivos copinhos de plástico tem sido motivo de punição pelos draconianos critérios do STJD, razão pela qual os próprios torcedores tem se autopoliciado no sentido de apontar os eventuais infratores, isentando o clube, como manda a legislação.

Mas nem isso livrou a cara do Grêmio. Nem mesmo a pronta identificação da meia dúzia de responsáveis pelas ofensas a Aranha, e relatado pela defesa do clube no julgamento do último dia 3/9, fez com que os auditores mudassem uma decisão que na verdade já estava tomada antes mesmo da sessão. Tanto é que um deles chegou a cochilar durante a explanação da defesa e no final, com a decisão unânime de eliminação da Copa Brasil, os cinco auditores comemoram efusivamente a palhaçada, o que revoltou ainda mais a cúpula gremista presente à sessão.

Auditores cuja isenção e integridade acabou ainda mais abalada com a divulgação, horas depois, pela Rádio Gaúcha e site do jornal Zero Hora, de fotos e comentários, estes sim, de inegável teor racista, na página do auditor Ricardo Graiche, no Facebook. Na foto mais chocante, um bebê negro envolto num rótulo de Coca-Cola, seguido de comentários jocosos que pouco depois foram apagados, mas não sem causarem grande embaraço ao mesmo, que por conta disso no dia seguinte licenciou-se do cargo.

Fato, sem dúvida, desabonador e comprobatório da improbidade do órgão que se arroga o papel de disciplinador e moralizador do futebol brasileiro, mas cujos membros, não bastasse o histórico de autoritarismo e arbitrariedades, sem falar da notória queda para exibicionismo do auditor-chefe, Paulo Schmitt, se constituem numa das muitas aberração que os clubes são obrigados a engolir sem reclamar. Escolhidos a dedo e com poderes absolutos, interpretam e decidem como bem entendem, chegam agora ao auge da arrogância ao ignorar a opinião generalizada de juristas conceituados de que o Grêmio deveria ser isentado de punição mais severa, basicamente por ter sido um fato isolado, envolvendo um grupo pequeno, devidamente identificado e já indiciado criminalmente.

Espírito macartista

Arrogância compartilhada por grande parte da imprensa, inclusive a gaúcha – em tese a mais interessada em preservar a imagem clube, mas que teve nomes importantes como David Coimbra, Wianey Carlet e Diogo Olivier saindo pela tangente e até apoiando a punição, sobrepondo o possível aspecto didático ao incomensurável prejuízo que a repercussão e a punição extrema representa para o Grêmio. E isso que o tal aspecto didático no fundo não passa de conversa para boi dormir, pois como já disse em meu artigo anterior, as barbaridades normalmente proferidas no calor da competição são da boca pra fora, se destinam muito mais a desestabilizar o adversário do que outra coisa.

Nesse contexto desgarrado do convívio social normal, sempre haverá quem se exceda, aqui ou em qualquer parte do mundo. O que não significa, é claro, que os excessos tenham que ser tolerados e relevados, principalmente as injúrias mais graves, como as dirigidas a Aranha na arena gremista. Abusos são abusos em qualquer meio ou situação, mas não é isso que se questiona. O que torna absurda a punição ao Grêmio são os critérios que prevaleceram.

Afinal, se a revolta do goleiro santista recebeu de pronto a solidariedade geral, indiferentemente a evidente dramatização dos fatos, não justifica que o clube pague pelo espírito macartista com que a imprensa esportiva e os déspotas do STJD trataram o caso. Afinal, embora o Código Brasileiro de Justiça Desportiva se baseia na premissa de que clube e torcida são indissociáveis, o próprio presidente do órgão, o advogado Caio Cesar Rocha, em opinião externada na seção “Tendências/Debates” na edição de sábado (6/9) da Folha de S.Paulo, finaliza sua ponderação favorável a pena com a ressalva de que cabe aos auditores analisarem cada caso com “parcimônia e responsabilidade, a fim absolvê-lo (o clube) quando identificados individualmente os torcedores infratores”.

Será que isso foi feito?

Segundo o jornalista gaúcho Leo Gerchmann, repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, que fez o contraponto na referida coluna, a própria história do clube exige um desagravo imediato e veemente contra o que reputa uma pena cruel e injusta, que pune duplamente a imensa torcida gremista. Que além da vergonha infligida por meia dúzia de bandidos transvestidos der torcedores, passa pela humilhação de ver o clube escorraçado da Copa do Brasil sob a pecha de racismo.

Um exagero que chega as raias do absurdo não só por se basear na má conduta de uma ínfima minoria, mas principalmente por sua história repleta de ídolos negros, a começar pelo lateral tricampeão mundial Everaldo, reverenciado com uma estrela dourada encimando o escudo do clube. História enaltecida num dos mais belos hinos entre os clubes brasileiros, composto pelo negro Lupicínio Rodrigues, o famoso “até a pé nós iremos, para o que der e ver; mas o certo é que nós estaremos, com o Grêmio onde o Grêmio estiver”, síntese, como lembrou Gerchmann, de uma trajetória feita de humildade, perseverança e superação.

Azul, branco e preto

O mesmo Grêmio que contou com a primeira e única torcida gay no país – a Coligay –, que de 1977 a 1983 coloriu de rosa as arquibancadas do Olímpico; e que no ano passado criou a campanha antirracista “somos azuis, brancos e pretos”, presente em todos os jogos da equipe desde então. Em suma, um clube sem responsabilidade efetiva que justifique ser transformado num bode expiatório para atender um senso de justiça e moralidade notoriamente tendencioso e oportunista. Clima, este, orquestrado por uma mídia especialista em atirar primeiro e perguntar depois, e um tribunal que chafurna na própria hipocrisia exposta nas tais postagens com ranço racista do auditor Graiche.

Sem falar na dramatização do próprio Aranha, que como goleiro mostrou ser um grande ator, mas que como possível símbolo da luta contra o racismo, ao contrário do que diz, parece não ter entendido bem as lições de Martin Luther King e, sobretudo, de Nelson Mandela. Não satisfeito com o inferno em que se transformou a vida da jovem Patrícia por conta de seu gesto impensado, foi mais uma vez com indisfarçável má vontade que ele aceitou suas súplicas por perdão, na entrevista coletiva que concedeu após o jogo do último sábado entre Santos e Vitória. Perdão meramente formal, como fez questão de deixar claro, pois além de não querer vê-la pessoalmente, diz não abrir mão da punição prevista pela lei.

“Já chega de passar a mão e tudo ficar na mesma. É preciso começar a punir esse tipo de coisa. Aí as pessoas vão pensar duas vezes antes de fazer”, foi mais ou menos o que disse, mandando o discurso conciliador às favas, sem se dar conta que a maior punição à garota (como ao próprio Grêmio) já foi perpetrada: o virtual linchamento popular a que vem sendo submetida desde que foi flagrada gritando a palavra que virou o pior dos xingamentos.

Virgem em bordel

Seja qual for o desfecho disso tudo, o precedente que se abre com a presente radicalização das coisas embute uma série de indagações e dúvidas. Basicamente, envolvendo a tipificação do tradicional corolário de xingamentos vigente nas praças esportivas, ou seja, sobre o que está sujeito a ser classificado como injúrias e ofensas passíveis de punição. O que para o Grêmio, em particular, representa uma espécie de risco em potencial permanente, já que o antigo símbolo do eterno rival, o Inter, é justamente um… macaco.

Um cenário tão sujeito a confusão e polêmica que me arrisco a prever que, serenado os ânimos e baixada a poeira, o mais lógico é que tudo permaneça exatamente como sempre foi. O que inclui a própria absolvição do Grêmio no julgamento do recurso impetrado contra sua exclusão da Copa do Brasil.

Pode não ser o ideal, mas antes o triunfo do bom senso do que a hipócrita justiça de vestais que querem se passar como virgens em bordel.

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Ivan Berger é jornalista