Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Guerra entre governo e ‘Clarín’ ganha força

Neste mês [outubro] o governo argentino rejeitou o plano voluntário de desmembramento do Grupo Clarín, a maior empresa de comunicação do país.

O presidente da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação (Afsca), Martín Sabbatella, considera que, pela forma como foram divididas as empresas entre os donos, haveria controle cruzado.

Essa decisão reabriu a disputa entre o governo e o grupo empresarial, diz Martín Sivak, autor do livro “Clarín, uma História” (sem edição no Brasil). “Agora o desfecho está totalmente aberto. Se me perguntassem há um mês, eu diria que terminaria com o plano de adequação à lei”.

Para Graciela Mochkofsky, autora do livro “O Pecado Original” (sem edição no Brasil), “o governo ganhou a batalha da Lei de Mídia: obrigou o grupo a abandonar sua resistência e se apequenar”.

Ela considera que a principal aspiração dos donos era manter o grupo unido até o fim do governo, em 2015.

A escritora diz que a Lei de Mídia, que completou cinco anos recentemente, foi uma das armas que o governo usou na guerra contra o grupo, mas não a única.

A relação entre o grupo econômico e os Kirchner começou amigável. Quando Néstor fazia campanha para a Presidência, em 2003, ele se aproximou de Héctor Magnetto, um dos principais acionistas do conglomerado, e teve com ele uma relação próxima até o fim de 2007.

Sivak conta que, quando estava subindo, Néstor “entendeu que era preciso construir alianças e que o Clarín’ é um ator importante da política argentina há anos”.

Por isso, concedeu benefícios governamentais ao grupo, como mais licenças para operar TV por assinatura, e passava novidades do governo a jornalistas do grupo. “E, nessa época, Magnetto concordava com a política econômica do governo”, diz ele.

Magnetto e Néstor se encontravam com frequência e discutiam o governo e a Argentina. Mas, em 2008, quando Cristina já era presidente, a cobertura de um conflito com ruralistas desagradou o casal Kirchner.

Em uma reunião na residência presidencial, Néstor tentou convencer Magnetto a mudar sua posição, o que não aconteceu. Os Kirchner teriam se sentido traídos.

A partir daí, começaram a aplicar sanções ao grupo. Uma das armas do Clarín foi o futebol. A associação argentina tinha um contrato de exclusividade para transmissão dos jogos nas TVs do grupo.

As partidas eram transmitidas pela TV fechada –por causa disso, quase 80% da população argentina assina um plano de canais, diz Daniel Larrache, diretor de gestão da Afsca.

O governo interrompeu o contrato e começou a pagar a associação de futebol e transmitir pela televisão pública, anunciando os jogos como um programa de Estado, “Futebol para Todos”.

Além de tentar machucar o bolso, houve um enfrentamento “por procuração”: governistas pressionaram a família de uma das donas, Ernestina Herrera de Noble.

Ela tem dois filhos adotados, e foi acusada de ter participado de um sequestro de filhos de militantes assassinados pela ditadura. Depois de longa disputa judicial, os herdeiros de Noble fizeram um teste de DNA e comprovaram que não são descendentes de vítimas da ditadura.

Estado nega tratar conglomerado de forma diferente

A Lei de Mídia completa cinco anos neste mês e, segundo o governo argentino, seus maiores méritos são possibilitar que novos grupos consigam ter um canal de rádio ou TV, principalmente no interior do país, e adequar os grandes meios às regras antimonopólio.

Segundo Daniel Larrache, diretor de gestão da agência de regulamentação da mídia, foram outorgadas 1.200 novas autorizações e licenças para funcionamento de rádios (AM ou FM) e TVs (abertas ou fechadas) pelo país.

Ele rechaça a ideia de que outros grupos tiveram tratamento melhor e que uma eventual diferença se deu pelo poder das empresas. “Nenhum outro conglomerado precisou se separar para se adequar à lei. Isso mostra o tamanho do Clarín.”

Entre as rádios, os grandes beneficiados foram as comunitárias e a Igreja Católica (que ganhou 44 frequências).

Ele também cita mais de 100 autorizações para comercializar o serviço de TV a cabo dadas a pequenas e médias empresas. A maioria dessas novas licenças foi dada fora das grandes cidades.

Ele diz que o outro mérito são os julgamentos das grandes empresas. Segundo o diretor, já foram 37 casos. “Alguns grupos tinham problemas de nacionalidade dos donos, outros de quantidade de licenças, outros de domínio de mercado, outros por ter acionista com incompatibilidades. O Clarín tinha todos os problemas”, afirma.

Governo quer desviar atenção, afirma grupo

O grupo Clarín tem 158 licenças para operar TV a cabo pelo país, 8 emissoras de rádio, pelo menos 7 canais de TV fechada e 4 de TV aberta.

Essas negócios foram divididos em seis partes, sendo que as duas mais valiosas permaneceriam nas mãos dos atuais donos.

O governo considerou que o plano tinha manobras para que essas duas fatias de negócio fossem controladas pelas mesmas pessoas: Héctor Magnetto.

Ele ficaria com parte de uma das unidades, mas tem uma sociedade comercial com um advogado que iria gerenciar a outra.

Agora, o governo planeja uma licitação pública para definir quem vai ficar com cada uma delas.

Para a empresa, trata-se de uma nova etapa de perseguição política ao grupo.

O porta-voz do conglomerado, Martín Etchevers, diz que a motivação para isso é que, à medida que a situação econômica do país piora, com previsão de recessão durante dois anos, “o governo busca inimigos ou adversários para desviar a atenção”.

Essa estratégia serviria para entusiasmar os militantes kirchneristas.

O motivo oficial da rejeição é que o plano tinha manobras para manter nas mãos dos maiores acionistas do momento as unidades de negócios que dão mais dinheiro, a TV a cabo.

O Clarín afirma que não há controle cruzado, pois a Lei de Mídia não se refere aos advogados que dirigem os fundos, mas só aos donos –”e, se um advogado aparece em uma sociedade que não tem nada a ver com as unidades de negócios em que se dividirão o Clarín, isso não afeta em nada a adequação”.

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Para autora, jornalismo crítico é vítima da disputa na imprensa

Graciela Mochkofsky diz que lei foi aprovada para destruir Clarín

A jornalista Graciela Mochkofsky tem dois livros sobre importantes capítulos da história da mídia argentina.

O primeiro deles, “Timerman”, é sobre o empresário de mídia Jacobo Timerman, que apoiou o golpe militar de 1966, mas foi perseguido pela última ditadura. Ele é pai do atual chanceler argentino, Héctor Timerman.

O outro, “Pecado Original”, relata a ligação entre o casal Kirchner e os donos do “Clarín”, que começou em amizade e virou uma briga.

Veja abaixo trechos da conversa com a Folha.

O campo

A TV por assinatura é o verdadeiro motor econômico do grupo. O maior faturamento, de longe, é dela, e não dos canais de TV ou dos jornais.

Esses são o espaço central onde se trava a batalha ideológica contra o governo. O diário é o central do grupo, o lugar de maior exposição.

E o jornal está passando por uma transformação, a ideia era dar mais força ao on-line. Mas a briga com o governo dificulta essa mudança, porque de 2008 para cá há uma guerra de sobrevivência, e o grupo perdeu quase todas as batalhas, sobretudo as econômicas.

As armas

A Lei de Mídia não causou o enfrentamento na Argentina. Ela foi um dos instrumentos que o governo usou, em parte, na batalha.

A maior motivação da lei era tentar destruir o grupo Clarín, diminuí-lo, algo que está acontecendo agora.

Mas ela já era reivindicada por amplos setores desde os anos 1980. Nós não enxergamos ainda todos os alcances da lei. Não está claro quais serão as consequências sociais.

O pós-guerra

Aconteceu uma grande polarização na Argentina, que se transferiu muito visivelmente aos meios de comunicação. Esse embate fez com que a disputa do governo com o Clarín ficasse mais visível.

Dividir a imprensa em facções fez com que a qualidade da informação na Argentina pagasse o preço. Os inimigos passaram a noticiar qualquer coisa do governo como algo diabólico. Não é uma visão crítica e independente.

E ao mesmo tempo surgiu um conglomerado de meios em que não há espaço para crítica ao governo.

É uma responsabilidade compartilhada, pois os donos dos jornais aceitaram as regras do confronto: quando o governo de Néstor, no começo, decidiu definir amigos e inimigos, os meios aceitaram.

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Felipe Gutierrez, da Folha de S.Paulo, em Buenos Aires