Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sobre máquinas de escrever

No auge da Alemanha Oriental comunista, qualquer um que comprasse sua própria máquina de escrever precisava datilografar nela um texto (não importava o conteúdo) e deixá-lo registrado em determinada seção do governo. A medida servia para que, futuramente, páginas pudessem ser rastreadas até o datilógrafo original. Pode-se imaginar a retaliação a alguém que ousasse pensar – e deixar por escrito – algo divergente do imposto pelo regime. A mão pesada do Estado iria buscá-lo nas pistas deixadas pela tinta de uma fita datilográfica marcada a cada caractere. Um absurdo, não?

Mais de 60 anos se passaram da divisão por um muro entre o oriente do totalitarismo e o ocidente da democracia. Apenas comentar uma medida como essa da Deutsche Demokratische Republik é capaz de provocar comichões nos ativistas das liberdades e direitos individuais. Atualmente, entre tantos que deixam registrados para a posteridade anseios e protestos, em folhas de prosa e verso, em fontes 12 ou 36, em letras coloridas, sublinhadas ou sombreadas, são poucos os que conhecem uma verdade sobre impressoras caseiras. Sejam elas a laser ou jato de tinta, sempre deixam pigmentos amarelos quase imperceptíveis nas bordas das páginas. Uma impressora nunca obedece ao mesmo padrão de rastros invisíveis de outra. Dá para saber, com muito mais rapidez do que a do regime comunista, a origem deste escrito temerário. Fabricantes sempre alegarão que se trata de uma medida para identificação e correção de equipamentos – em resumo, uma ação a favor do cliente. Nunca o contrário.

Claro que máquinas de escrever e impressoras aparecem neste texto como alegorias. Há formas muito mais eficientes de saber o que você anda escrevendo, executando ou tramando. Potencialmente, todos os e-mails do mundo são rastreados, assim como conversas telefônicas e a localização exata de cada usuário de celular. A diferença é que, quando isso vem à tona, termina justificado sob capas de segurança, guerra contra terrorismo, nunca um palavrão, do tipo “invasão de privacidade”. A diferença entre as máquinas de datilografia da Alemanha comunista e as multifuncionais da democracia está no discurso.

Um software de monitoramento de ligações ou e-mails

Você já deve ter ficado intrigado com a coincidência que é mudar o status de relacionamento para noivo em sua rede social e, de repente, passar a receber, no e-mail, spams de bufês para festas de casamento. Ou então comprar um tênis na internet e ver pipocar, em quase todo site, anúncios patrocinados de lojas esportivas. Tudo isso, quando questionado, é traduzido em expressões como customização, comodidade, cruzamento de dados. É proibido falar algo que lembre espionagem.

Recentemente, um aplicativo ficou notório por mostrar como o Google rastreia todos os movimentos de celulares que estão cadastrados em seu sistema. Até mesmo de quem não optou por isso. Enormes servidores armazenam, literalmente, todos os seus passos. Para minimizar o impacto de uma descoberta desse tipo, a informação é colocada até de um jeito lúdico: agora, você pode montar um mapa, colorido e interativo, de suas andanças por aí.

Se nem os governos e autoridades estão imunes – o “criminoso” Edward Snowden burlou o sistema para escandalizar o mundo com essas informações –, não é o cidadão médio que poderia se dizer livre para exercer plenamente o legado da democracia. Nesse jogo de informação e contrainformação, qualquer lenda pode ser levada em conta. Como uma que dá até o nome de Guardião a um software de monitoramento de ligações ou e-mails, protegido em uma divisão especial da Secretaria de Segurança Pública da Bahia. Em nome da proteção da sociedade, que mal há em um sofisticado Guardião, ocupando um andar confidencial de uma repartição pública?

Reflita melhor antes de colocar a fita da máquina de escrever alemã como símbolo máximo do totalitarismo. Aliás, falando em refletir, já tomou cuidado sobre o que vai pensar no dia de hoje?

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Pablo Reis é jornalista, Salvador, BA