Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O rádio e a TV sob pressão

As regras impostas às TVs [Emissoras de televisão que operam em UHF e VHF e os canais de assinatura sob responsabilidade do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais. São excluídos os canais por assinatura ou TV a cabo] e às rádios [Emissoras de rádio AM/FM e comunitárias], em ano de eleição, são extremamente rígidas e detalhadas. A rigidez e o engessamento a que são submetidos esses veículos revelam, por um lado, a crença de que os eleitores são facilmente manipuláveis pelas emissoras, que possuem penetração indiscutível em todo o território. Por outro, evidenciam indisfarçável ranço autoritário, tudo sob o argumento retórico de que é necessário defender a igualdade de participação dos candidatos no pleito político e, por conseguinte, a própria democracia. Como consequência, observa-se um efeito aniquilador: o excesso de regulamentação, que pretensamente protege a isonomia dos candidatos, acaba por ferir o princípio da liberdade de imprensa, o que, por sua vez, envenena o próprio regime democrático.

Todo o arcabouço jurídico é muito bem construído. Os princípios que regem a legislação eleitoral são estruturados e legítimos, mas essa aparente sintonia não resiste a uma análise mais aprofundada.

Em primeiro lugar, a justificativa de aplicação de restrições a rádios e TVs tem fundamento no fato de que essas emissoras operam sob concessão [Cf. art. 223 da Constituição Federal], o que, no vocabulário jurídico, significa um modo de descentralização de um serviço público. No caso, o bem público é o espectro de radiofrequências, e o serviço, sua exploração para atender a finalidade e a interesses públicos. Na lógica jurídica, uma vez que exploram um serviço público, as emissoras são obrigadas a obedecer a determinadas disposições, como ceder espaço à propaganda eleitoral. Outros veículos, como a imprensa escrita, a internet e as televisões por assinatura e a cabo não possuem as mesmas restrições [Esses veículos também sofrem algum tipo de restrição, como quanto à quantidade de propaganda paga dentre outras, que são, todavia, bem menores do que as restrições impostas às emissoras de rádio e TV], nem se sujeitam a abrir espaço para a propaganda eleitoral.

O outro princípio que dá fundamento à legislação eleitoral é a igualdade de oportunidade de acesso e de utilização dos veículos de comunicação social pelos candidatos, de modo a garantir a lisura da escolha. Grande parte da doutrina jurídica reafirma e apoia esse princípio, sob a consideração de que, para dar abrigo à pluralidade partidária, é necessária a disseminação da propaganda política mediante o acesso gratuito ao rádio e à TV.

Com fundamento nesses dois princípios, a interferência da legislação eleitoral na programação das emissoras de rádio e TV é patente. Ela se dá pela propaganda política e também pela regulamentação dos debates e controle do próprio noticiário.

Propaganda política

Tecnicamente, a propaganda política no rádio e na TV se divide em duas espécies: a partidária e a eleitoral. É o chamado direito de antena, também conhecido entre nós pelo horário eleitoral gratuito. A propaganda partidária [Cf. art. 45 Lei 9096/95] ocorre duas vezes nos anos em que não há eleição e uma vez, no primeiro semestre, nos anos em que há eleições. Já a propaganda eleitoral tem por objetivo divulgar candidaturas em ano de eleições e é veiculada durante os 45 dias que antecedem a antevéspera do pleito. Tanto uma quanto a outra acabam por interferir de algum modo na programação das emissoras de rádio e de televisão, no mínimo em razão da cessão de tempo. As emissoras são obrigadas a disponibilizar horário para a propaganda partidária, abrindo mão da programação normal.

O direito de antena é garantido pelo artigo 17 da Constituição Federal [Constituição Federal, Art. 17. ”É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: (…) § 3º– Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei. (…)”], e foi instituído em 1965 por Castelo Branco [Cf. Lei 4.737, de julho de 1965, que instituiu o Código Eleitoral. O artigo que dispunha sobre a propaganda gratuita era o 250, e foi revogado pela Lei 9.504/97]. É defendido por políticos, juristas e sociólogos, sob o argumento de ser “o único espaço de que dispõe o partido para se apresentar, sem mediações; o único espaço que se lhe é oferecido para revelar ao eleitorado, e defendê-las, as suas respectivas visões de realidade, suas visões de mundo e sociedade”. [AMARAL, Roberto, in Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 37 n. 146 abr./jun. 2000, pág. 19. Roberto Amaral é advogado e ex-presidente do PSB. Foi ministro da Ciência e Tecnologia do governo de Luiz Inácio Lula da Silva] Os dispositivos que regem o horário eleitoral estipulam tantos e tão detalhados procedimentos no que diz respeito à divisão do tempo e às regras de não agressão, que tornam a propaganda política completamente enfadonha.

Como revela a pesquisa de opinião divulgada pelo Datafolha em 1º de setembro de 2014, a propaganda política na TV desperta interesse em 53% dos eleitores brasileiros. Nessa parcela estão tanto aqueles que têm muito interesse (20%) quanto os que têm um pouco de interesse (33%). A falta de interesse pelo horário eleitoral certamente diz respeito à péssima utilização do tempo pelos candidatos e pelos partidos. Ainda que, em tese, o horário eleitoral gratuito tenha o propósito de difundir propostas e ideias para informar o eleitor, o que se vê são programas sem nenhuma exposição de plataforma relevante. Mesmo assim, os partidos se digladiam para obter mais tempo para ficar em evidência no rádio e na TV.

Muitos países adotam o direito de antena, justamente como modo de assegurar igualdade de acesso dos candidatos a um meio tão difundido. Há diferenças, contudo, entre os países, na forma em que é regulada a distribuição do tempo. No Brasil, atualmente [Lei 12.875/2013], prevalece uma divisão proporcional ao número de representantes na Câmara dos Deputados; assim, apenas uma parcela muito pequena do tempo (menos de 1/9) é distribuída igualitariamente entre todos os partidos e coligações. Disso resulta, por óbvio, que partidos com mais representantes ou coligações detenham uma parcela de exposição exageradamente superior à de outros, anulando, sob esse aspecto, o próprio princípio que justifica o direito de antena.

Importante ressaltar que a propaganda eleitoral é “gratuita” apenas do ponto de vista dos candidatos e dos partidos. As emissoras são remuneradas por um mecanismo que assegura uma compensação fiscal na apuração do Imposto de Renda, a título de contrapartida pela cessão do horário. Em resumo, o pagamento é feito pelo cidadão [Nesse sentido, verificar art. 99 da Lei 9.504/97 e Decreto 7.791/12].

Jogo eleitoral

A propaganda partidária e eleitoral, no rádio e na televisão, no Brasil, se restringe ao horário gratuito; portanto, é proibido qualquer tipo de publicidade paga [Art. 44 da Lei 9.504/97]. A combinação das duas disposições – de um lado, o acesso gratuito aos veículos e, de outro, a proibição da propaganda paga – tem por justificativa impedir que os veículos de comunicação social possam desequilibrar o jogo eleitoral, privilegiando certos candidatos em detrimento de outros, em vista da influência que poderiam exercer na formação da opinião pública. Também nesse aspecto, a legislação difere da de outros países que permitem a propaganda paga [Em outros países, como no Canadá, prevalece um sistema misto, com propaganda gratuita e paga].

Mesmo que as emissoras recebam algum proveito pela cessão do horário eleitoral, que certamente não as remunera de maneira adequada, o próprio direito de antena já é uma interferência na programação. Ainda assim, é uma interferência legítima, por possibilitar a apresentação de partidos, plataformas e candidatos. O detalhamento das regras brasileiras para o horário eleitoral, contudo, leva a um mau uso desse precioso tempo pelos partidos, que produzem um programa entediante, conspurcando a finalidade do próprio instituto.

Não bastasse a restrição representada pelo horário eleitoral gratuito, as emissoras de rádio e TV também sofrem os efeitos de limites impostos ao conteúdo de suas programações, o que inclui o noticiário e os debates realizados entre candidatos. As restrições constam da Lei das Eleições [Art. 45 da Lei 9.504/97] e basicamente se referem à vedação de (a) apresentar consulta popular ou pesquisa em que o entrevistado seja identificado (art. 45, I); (b) dar tratamento privilegiado a candidato ou partido (art. 45, IV); (c) veicular filme, novela, minissérie ou qualquer outro programa com alusão ou crítica a candidato (art. 45, V); e (d) transmitir programa cujo apresentador ou âncora seja candidato (art. 45, parágrafo 1º).

Em 2010, por força de uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu duas outras vedações constantes da lei, quais sejam (e) usar recursos que de algum modo degradem a imagem de candidatos (art. 45, II) e (f) difundir opinião favorável ou contrária a candidato ou partido (art. 45, III). Na ocasião, a Abert manifestou que os referidos dispositivos poderiam gerar “um grave efeito silenciador sobre as emissoras de rádio e televisão” [Petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Abert], que estariam proibidas de veicular opiniões políticas polêmicas em período eleitoral. Opiniões, por natureza, sempre podem ser contrárias ou favoráveis a candidatos – o que seria vedado. Esses dispositivos ainda limitariam severamente os programas de humor e sátira, ou a divulgação de charges, que poderiam ser consideradas depreciativas para os candidatos.

Na decisão que proferiu, de relatoria do ministro Ayres Britto, o Supremo Tribunal foi enfático ao afirmar que “não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. (…) Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha”. E arrematou: “a liberdade de imprensa assim abrangentemente livre não é de sofrer constrições em período eleitoral. Ela é plena em todo o tempo, lugar e circunstâncias. Tanto em período não eleitoral, portanto, quanto em perío-
do de eleições gerais. Se podem as emissoras de rádio e televisão, fora do período eleitoral, produzir e veicular charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam partidos políticos, pré-candidatos e autoridades em geral, também podem fazê-lo no período eleitoral. Processo eleitoral não é estado de sítio (…)” [Ver aqui].

Não à censura

Realmente os dispositivos suspensos pelo STF contrariam os princípios da Constituição Federal que dispõem sobre a ampla liberdade de imprensa, com vedação de qualquer forma de censura. A sistemática constitucional brasileira dispõe que todo abuso da liberdade de expressão deverá ser resolvido em perdas e danos, não sendo permitida nenhuma limitação prévia. A proibição de veiculação de opinião favorável ou contrária a candidato ou partido é claramente inconstitucional por consistir em restrição à manifestação. A decisão do Supremo Tribunal é no sentido, então, de que em perío-
do eleitoral pode haver manifestação favorável ou contrária a candidato, pelo rádio e TV, sempre que objetiva e fundamentada em dados concretos.

Suspensos os dois dispositivos acima referidos, restaram os demais, dentre eles o que proíbe o tratamento privilegiado de candidato. Esse dispositivo possui um grau de subjetividade que impacta a programação das emissoras, por ser absolutamente impossível definir o que configura “tratamento privilegiado”. A expressão pode dizer respeito tanto ao tempo dedicado a um candidato no noticiário quanto ao tipo de abordagem que é feita do seu desempenho ou de suas características. Por outro lado, a própria importância de um candidato no cenário político ou social importará em seu maior destaque em relação a um outro, o que certamente, e com base no mesmo princípio de liberdade de imprensa, fará com que sejam divulgadas mais notícias sobre quem sobressai em relação aos concorrentes.

Veja-se que a inexistência de regra que imponha a desincompatibilização em caso de reeleição, para dar um exemplo de situação limítrofe, já é, por si mesma, um fator que acaba por favorecer a aparição, no noticiário, daquele que exerce a administração pública. Um candidato que ocupa um cargo executivo certamente atrai para si mais atenção do noticiário do que um rival eleitoral que não está no exercício da administração pública. Não se poderia, nessa situação, alegar que um candidato foi privilegiado em relação ao outro, pois é natural que aquele que ocupa cargo público tenha maior exposição. A generalidade da disposição legal, devido à sua subjetividade, afeta o noticiário das emissoras.

Outra interferência despropositada se dá quanto aos debates no rádio e na TV [Art. 46 da Lei 9504/97]. É normal supor que as emissoras tenham interesse em veicular debates com determinados candidatos e não com outros, seja em razão da representatividade, seja em razão dos temas que abordam. Mas a rigidez das disposições legais, especificamente no que se refere aos debates, prejudica o interesse jornalístico.

As regras são muito restritivas. Alguns exemplos: (a) os debates relativos às eleições majoritárias somente podem ocorrer se estiverem presentes todos os candidatos [Ou em grupos de no mínimo três candidatos]; (b) se um deles não comparecer, deverá a emissora comprovar que o convidou a tempo [Com antecedência mínima de 72 horas], e que não obteve retorno; (c) a dinâmica dos debates deve seguir aquilo que os partidos decidirem por comum acordo; (d) mas nos debates referentes ao primeiro turno, é obrigatório que a dinâmica (perguntas, tempo de resposta etc.) seja aprovada por pelo menos 2/3 dos candidatos; (e) o dia, o horário e a ordem de fala dos candidatos devem ser fixados por sorteio; e (f) a divulgação do debate deve ser feita com antecedência, como programação da emissora.

Essas regras referentes aos debates extrapolam muito os princípios que norteiam a liberdade de expressão, o direito de informação dos cidadãos e o direito de informar das emissoras. A programação fica engessada, o que afasta o interesse jornalístico do confronto de ideias e de propostas dos candidatos. A dinâmica de um debate também é prejudicada com o excesso de disciplina, pois a característica intrínseca do confronto é o rompimento de padrões de discurso.

Democracia e liberdade

Ainda que as empresas de radiodifusão explorem um canal público, elas gozam das mesmas prerrogativas de liberdade de expressão, de imprensa e de informação que outros veículos. Ao serem submetidas a regras que interferem na programação em períodos eleitorais, aí incluídos os debates, as emissoras sem dúvida são prejudicadas, mas não apenas elas: os eleitores também sofrem as consequências de não poderem ter livre acesso às discussões sobre plataformas políticas.

Veja-se que, nos Estados Unidos, a Lei das Comunicações, conhecida como Equal Time Rule, também dispõe que as TVs e os rádios obrigatoriamente tratem os candidatos políticos de modo igualitário, concedendo-lhes tempo proporcional no direito de antena. A igualdade de acesso, naquele país, importa em que, se uma emissora conceder um minuto gratuito a um candidato, ela deverá proceder de igual modo com seu concorrente político, caso este se manifeste nesse sentido. Documentários, entrevistas, debates e talk shows [ver aqui] são excetuados dessa regra, por serem considerados notícias. E a regulação de toda a sistemática é feita pela Federal Communications Commission (FCC), uma agência regulatória independente, o que agiliza os procedimentos.

Certo grau de controle sobre a igual oportunidade de acesso dos candidatos ao rádio e à TV é legítimo e é, aliás, praticado por diversos países. No Brasil, tendo em vista que diversos canais de rádio e de TV são distribuídos a políticos, no mais escancarado processo fisiológico, e que muitos canais têm penetração monopolística em regiões e municípios mais afastados, é bem razoável que haja a propaganda eleitoral “gratuita”.

O mesmo não se pode dizer quanto aos debates e noticiário. As regras impostas a eles não são adequadas nem compatíveis com o fim a que se destinam. Não é porque há sorteio do dia e da hora do debate que resta assegurada a isonomia dos candidatos. Do mesmo modo, a regra que veda o tratamento privilegiado de candidato também não é suficiente para evitar que uma emissora favoreça um partido ou coligação. Ao contrário, o excesso de normas acaba por tornar desinteressante o processo eleitoral, prejudicando a informação dos eleitores.

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Taís Gasparian é advogada, mestre pela Faculdade de Direito da USP e sócia do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian Advogados.