Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Liberdade de expressão em Cuba deve melhorar

A liberdade de expressão em Cuba experimenta uma melhora consistente nos últimos anos, e a reaproximação com os EUA tende a ajudar esse processo, na avaliação de Gustavo Andújar, diretor da revista católica “Espacio Laical”, a mais importante publicação não-estatal do país, que circula há 10 anos.

“Historicamente, as justificativas que se dão para as limitações impostas à liberdade de expressão em Cuba partem de considerar que há um estado de guerra virtual, na qual Cuba está na condição de ‘praça sitiada’ (…) [Mas] esse raciocínio não poderia se manter vigente da mesma forma quando se normalizem as relações com os EUA”, disse.

Andújar afirma que, apesar do debate da cada vez mais aberto em Cuba sobre os problemas do país, ele se mantém “restrito às elites intelectuais e a espaços aos quais a maioria da população não tem acesso”. Cita a blogosfera e recorda que o acesso à internet é reduzido por volta de 3%.

Em entrevista por e-mail à Folha, ele falou sobre a reaproximação de Cuba com os EUA, liberdade de expressão, internet e o futuro da revista.

“Espacio Laical” é vista como o meio independente mais importante de Cuba, ao abrir espaços para temas controvertidos em política e economia, mas passa por uma reformulação. O que vai mudar e o que permanecerá?

Gustavo Andújar – Na apresentação do número que agora está no prelo explicamos com detalhes essas mudanças: a revista abandonará o tom acadêmico que havia assumido nos últimos anos. Não queremos que seja uma publicação para estudar, mas para ler. Voltará à sua extensão inicial (cerca de 100 páginas), com um desenho mais atraente, menos rígido.

Os artigos serão, em geral, mas curtos e menos densos, ainda que esperamos manter a solidez e o tino. Os temas sociais, econômicos e políticos continuarão presentes, mas cederão o espaço, que haviam praticamente monopolizado, a outras manifestações culturais: artigos dedicados às artes visuais, à música, à dança e à poesia estarão presentes junto com as tradicionais paginas dedicadas à literatura.

Obviamente, temas polêmicos da vida nacional receberão grande atenção, mas “Espacio Laical” não quer ser uma revista de ciências sociais, mas deseja estender seu olhar para o amplo universo da fé, da cultura e da sociedade.

É muito importante, por outro lado, destacar que “Espacio Laical” não é apenas uma revista, mas também um espaço de intercâmbio aberto e plural. Continuaremos organizando conferências e debates sobre temas da atualidade que estarão na revista e também continuaremos editando livros.

Neste momento, temos em preparação duas compilações de artigos sobre temas que consideramos absolutamente centrais para o presente e o futuro do país: o perdão e a reconciliação, considerados a partir de uma perspectiva ampla, dos pontos de vista religioso, filosófico, cultural e político.

Qual é o espectro de colaboradores da revista?

G.A. – Nós nos esforçamos para retomar muitos dos contatos estabelecidos durante a etapa anterior da revista e que foram interrompidos –esperamos que apenas temporalmente– com a transição da equipe de redação.

Neste aspecto, não está prevista nenhuma mudança: a revista continua aberta a colaborações de um amplo universo de correntes e tendências, com o requisito fundamental de que o que se escreve esteja animado com o espírito de respeito às pessoas e à sua dignidade, e sempre aberto a promover um diálogo respeitoso entre iguais.

Como tem sido a colaboração de funcionários do governo, incluindo professores universitários?

G.A. – Estamos ainda começando esta nova etapa, e é preciso ver a reação do governo diante das mudanças introduzidas na revista, mas no passado não foi uma situação homogênea.

Em geral, a revista tem desfrutado de respeito da intelectualidade em instituições “oficiais”, como as universidades e institutos de pesquisa. Temos contado, em geral, com uma boa disposição das pessoas, a título individual, em colaborar com a revista.

Quanto à atuação das instituições, embora alguns professores e pesquisadores nunca tenham sofrido pressões por colaborar com a revista, em outros caso de fato houve, de variada gravidade. Apesar disso, sempre temos de trabalhar com toda naturalidade e transparência. Se há atritos, vêm dos outros, e não de nós.

As recentes mudanças nas relações com os EUA e as reformas econômicas deverão ter algum impacto na liberdade de expressão?

G.A. – Já há algum tempo se observa, com altos e baixos e flutuações, mas com certa consistência, uma ampliação dos temas e dos espaços de debate na sociedade cubana.

Abordam-se de forma cada vez mais aberta os problemas que afetam a sociedade e os cubanos, ainda que o debate se mantenha, em geral, restrito às elites intelectuais e a espaço aos quais a maioria da população não tem acesso.

Dessa forma, cabe congratular-se da riqueza da liberdade do debate na blogosfera cubana, mas a realidade é que os grandes meios continuam fechados a esse espírito de debate aberto e plural, e a grande maioria da população não tem acesso à internet, onde esse debate é produzido.

Historicamente, as justificativas que se dão para as limitações impostas à liberdade de expressão e Cuba partem de considerar que existe um estado de guerra virtual, na qual Cuba está na condição de “praça sitiada”. Nessas condições, não se pode permitir nenhuma expressão de dissidência, equivalente a uma traição.

Esse raciocínio não poderia se manter vigente da mesma forma quando se normalizem as relações com os Estados Unidos. De forma que está para ser visto o impacto real que terá o processo de normalização das relações nas possibilidades de os cidadãos se expressarem com liberdade.

Você acha possível o surgimento de mais meios de comunicação independentes no curto prazo?

G.A. – Em Cuba, as únicas entidades organizadas que têm uma situação de independência do Estado são as igrejas. Mesmo organizações que se apresentam como ONGs cubanas, como associações profissionais ou culturais, devem ter o respaldo de um organismo estatal (chamado órgão de referência) para obter reconhecimento legal.

“Espacio Laical”, assim como os demais meios de imprensa católicos, se beneficia, nesse sentido, da situação especial que a igreja tem em Cuba.

Como estão as coisas, eu não esperaria o surgimento de mais “meios independentes” no curto prazo.

Há “linhas” que a revista não cruza?

G.A. – O conceito de Cuba como “praça sitiada” tem expressões muito concretas na legislação vigente. Basta dizer que um artigo de opinião sobre temas políticos, que poderia ser perfeitamente normal em outro país, em Cuba corre o risco de ser considerado “propaganda inimiga” e ter consequências penais (incluindo anos de prisão) para as pessoas implicadas em sua publicação. Nossa revista tem essas circunstâncias muito em conta.

Nestes dez anos, houve algum tipo de censura do governo cubano?

G.A. – Nunca se exigiu de nenhuma publicação católica cubana se submeter à censura ou revisão aprovatória por nenhuma autoridade do Estado, do governo ou do Partido Comunista.

Trata-se de uma publicação da Igreja Católica. Qual é o objetivo?

G.A. – A igreja sempre tem uma palavra para dizer sobre a sociedade da qual faz parte: a sua missão se dirige a todos os seres humanos.

“Espacio Laical” tenta materializar aqui em Havana essa intenção da igreja de se fazer presente no amplo campo da atividade social humana, que abarcamos na expressão “fé, cultura e sociedade”.

Quer fazer acompanhando, esclarecendo, conciliando, curando: resolvendo conflitos, abrindo espaços de diálogo e entendimento, eliminando preconceitos e desentendimentos, promovendo, no final, aqueles valores universais e duradouros que cimentam o melhor futuro para Cuba e os cubanos.

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Fabiano Maisonnave, da Folha de S.Paulo, em Havana