Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quem afinal morreu no ataque à ‘Charlie Hebdo’

Mais uma vez, vejo-me obrigado a romper a pausa sabática imposta à rede social. Por quê? Porque amigos me indagam sobre o ataque fundamentalista em Paris.

Pude saborear longas estadias na “Cidade Luz”, uma delas durante a cobertura da Copa do Mundo FIFA de 1998.

Coincidentemente, sempre retornei narrando maravilhas da comunidade muçulmana francesa, cuja riqueza cultural se pode admirar no belo Institut du Monde Arabe ou nas jornadas da Fête de La Musique.

Ali, aprendi a gostar da música Raï (Opinião), nascida na Argélia, estendida ao Marrocos. Antes da moda chegar ao Brasil, curti Faudel, Taha e Khaled, também eles vítimas de fundamentalismos.

Após a crise dos subprimes, em 2008, o mundo mudou. Na verdade, mudou mais do que depois dos ataques de 11 de Setembro de 2001.

Às políticas de austeridade, sabotadoras do “status social” nos países europeus, seguiu-se a seca de investimentos nos países da periferia do capitalismo, que começa logo ali, na Espanha e na Grécia.

Reforçou-se o projeto oportunista de patrocinar levantes juvenis para derrubar governos de inspiração esquerdista ou popular, nas famigeradas primaveras que, entre outras aventuras, levaram neonazistas ao poder na Ucrânia.

Os acontecimentos bordados na transição de milênio delinearam este “esprit du temps” contraditório, em que ovos quentes incubam serpentes do pior reacionarismo.

Na França, em particular, viu-se a radicalização do conflito étnico, quase sempre oculto na finesse retórica dos políticos, à direita e à esquerda, interessados em manter a imagem civilizada da república.

Santidade nuclear

Jean-Marie Le Pen virou persona cult para a juventude coxinha do país, uma espécie de Olavo de Carvalho mais bem vestido e com cacife eleitoral.

Seu partido, Front Nacional, emulou Hitler para apontar na etnia “visitante” a responsabilidade por todos os problemas nacionais. Islâmicos na mira. Pau principalmente na gente da Tunísia e da Líbia, países destroçados pelas aventuras primaveris.

Há quatro anos, o partido obteve nada menos que 18% na eleição presidencial. Em 2014, foi o mais sufragado na eleição para o parlamento europeu, abocanhando 25% do total de votos.

Nestes anos difíceis, em que o mundo ainda respira a poeira das torres caídas do Lehman Brothers, balsas aos montes transportam famintos para o pé da Europa.

No reduto do médio conforto, erguem-se as vozes da xenofobia. Na Alemanha, é o caso do barulhento Pegida (Europeus Patriotas Contra a Islamização do Ocidente), que vivem se manifestando nas ruas, com apoio de grupos neonazistas.

A contrapartida é a insurgência jovem em muitos desses países. Os motards rebelados, aliás, nem sempre são filhos de imigrantes muçulmanos.

Tornaram-se jihadistas meninos de classe média que não suportam mais “isso tudo que está aí”. Existe aí algum vírus preservado desde 1789 e desde 1968, mas o desejo e o método são muito distintos. Heráclito explica.

O “isso tudo que está aí” é muito mais do que política. Se falta o conhecimento histórico de tensões iniciadas na disputa das Cruzadas, sobra o tédio pelo mundo ocidental multiconectado, gameficado, pós-industrial, empobrecido, chato, cínico, dominado pelas grandes corporações financeiras do eixo Londres-Washington.

Há um junhismo global, ao mesmo tempo lícito e infame, justificado e também estúpido, que bota fora a água no vaso comunicante da esquerda.

Estima-se que hoje existam mais de 3 mil jovens europeus incorporados às fileiras do Estado Islâmico (EI), agindo sob ordens do “califa” Abu Bakr al-Baghdadi.

O ataque à redação do Charlie Hebdo constitui-se, portanto, em muito mais do que um ato de vingança contra as charges que exibiam o profeta Maomé.

Evidenciam um mundo que ainda não soube superar a metodologia conciliatória do período da Guerra Fria, em que a santidade nuclear acalmava ânimos aqui e acolá.

Resultado trágico

A receita neoliberal não trouxe a tal prosperidade compartilhada. A mão invisível do mercado não estabeleceu equilíbrio ou paz para os cidadãos do ambiente globalizado.

Ao mesmo tempo, as antigas cartilhas da socialização forçada, ancoradas na realidade industrial do Século 19 e na “classe operária” em processo de descaracterização (Elio Petri já nos avisava em 1971), não servem mais à construção dos sonhos humanos.

Cabe destacar, neste processo de desilusão, a aparição de pálidas lideranças da esquerda conformista, como François Hollande. Mais liberdade, igualdade e fraternidade teria obtido a França com sua ex-parceira, Ségolène Royal.

Resultado: acabaram com a vida de Wolinski (entre outros), este sujeito nascido na Tunísia (!), seriamente engraçado, que aprendi a admirar na páginas de Libération e L’Écho des savanes.

Impactava o artista pela capacidade de misturar o sexo e a política, fazendo do riso o portal do palácio da reflexão. Erguia-se como um entusiasta da diversidade e da solidariedade sem fronteiras.

O resultado dois é trágico para as comunidades árabes e muçulmanas no Ocidente.

Hoje ou amanhã, qualquer amanhã, o motorista de táxi argelino que trafega por Lyon ou Chicago ouvirá um palavrão ou levará uma pedrada na cabeça.

Pior, talvez receba um passageiro que, com ele, não trocará uma só palavra. E este também é um atentado mortal.

QUEM AFINAL MORREU NO ATAQUE ? CHARLIE HEBDOMais uma vez, vejo-me obrigado a romper a pausa sabática imposta ? rede social. Por qu?? Porque amigos me indagam sobre o ataque fundamentalista em Paris.Pude saborear longas estadias na "Cidade Luz", uma delas durante a cobertura da Copa do Mundo FIFA de 1998.Coincidentemente, sempre retornei narrando maravilhas da comunidade muçulmana francesa, cuja riqueza cultural se pode admirar no belo Institut du Monde Arabe ou nas jornadas da F?te de La Musique.Ali, aprendi a gostar da música Ra? (Opini?o), nascida na Argélia, estendida ao Marrocos. Antes da moda chegar ao Brasil, curti Faudel, Taha e Khaled, também eles vítimas de fundamentalismos.Após a crise dos subprimes, em 2008, o mundo mudou. Na verdade, mudou mais do que depois dos ataques de 11 de Setembro de 2011. ?s políticas de austeridade, sabotadoras do "status social" nos países europeus, seguiu-se a seca de investimentos nos países da periferia do capitalismo, que começa logo ali, na Espanha e na Grécia.Reforçou-se o projeto oportunista de patrocinar levantes juvenis para derrubar governos de inspiraç?o esquerdista ou popular, nas famigeradas primaveras que, entre outras aventuras, levaram neonazistas ao poder na Ucrânia.Os acontecimentos bordados na transiç?o de mil?nio delinearam este "esprit du temps" contraditório, em que ovos quentes incubam serpentes do pior reacionarismo.Na França, em particular, viu-se a radicalizaç?o do conflito étnico, quase sempre oculto na finesse retórica dos políticos, ? direita e ? esquerda, interessados em manter a imagem civilizada da república.Jean-Marie Le Pen virou persona cult para a juventude coxinha do país, uma espécie de Olavo de Carvalho mais bem vestido e com cacife eleitoral.Seu partido, Front Nacional, emulou Hitler para apontar na etnia "visitante" a responsabilidade por todos os problemas nacionais. Islâmicos na mira. Pau principalmente na gente da Tunísia e da Líbia, países destroçados pelas aventuras primaveris.Há quatro anos, o partido obteve nada menos que 18% na eleiç?o presidencial. Em 2014, foi o mais sufragado na eleiç?o para o parlamento europeu, abocanhando 25% do total de votos.Nestes anos difíceis, em que o mundo ainda respira a poeira das torres caídas do Lehman Brothers, balsas aos montes transportam famintos para o pé da Europa.No reduto do médio conforto, erguem-se as vozes da xenofobia. Na Alemanha, é o caso do barulhento Pegida (Europeus Patriotas Contra a Islamizaç?o do Ocidente), que vivem se manifestando nas ruas, com apoio de grupos neonazistas.A contrapartida é a insurg?ncia jovem em muitos desses países. Os motards, aliás, nem sempre s?o filhos de imigrantes muçulmanos. Tornaram-se jihadistas meninos de classe média que n?o suportam mais "isso tudo que está aí". Existe aí algum vírus preservado desde 1789 e desde 1968, mas o desejo e o método s?o muito distintos. Heráclito explica.O "isso tudo que está aí" é muito mais do que política. Se falta o conhecimento histórico de tens?es iniciadas na disputa das Cruzadas, sobra o tédio pelo mundo ocidental multiconectado, gameficado, pós-industrial, empobrecido, chato, cínico, dominado pelas grandes corporaç?es financeiras do eixo Londres-Washington. Há um junhismo global, ao mesmo tempo lícito e infame, justificado e também estúpido, que bota fora a água no vaso comunicante da esquerda.Estima-se que hoje existam mais de 3 mil jovens europeus incorporados ?s fileiras do Estado Islâmico (EI), agindo sob ordens do "califa" Abu Bakr al-Baghdadi.O ataque ? redaç?o do Charlie Hebdo constitui-se, portanto, em muito mais do que um ato de vingança contra as charges que exibiam o profeta Maomé. Evidenciam um mundo que ainda n?o soube superar a metodologia conciliatória do período da Guerra Fria, em que a santidade nuclear acalmava ânimos aqui e acolá.A cartilha neoliberal n?o trouxe a tal prosperidade compartilhada. A m?o invisível do mercado n?o estabeleceu equilíbrio ou paz para os cidad?os do ambiente globalizado.Ao mesmo tempo, as antigas cartilhas da socializaç?o forçada, ancoradas na realidade industrial do Século 19 e na "classe operária" em processo de descaracterizaç?o (Elio Petri já nos avisava em 1971), n?o servem mais ? construç?o dos sonhos humanos.Cabe destacar, neste processo de desilus?o, a apariç?o de pálidas lideranças da esquerda conformista, como François Hollande. Mais liberdade, igualdade e fraternidade teria obtido a França com sua ex-parceira, Ségol?ne Royal.Resultado: acabaram com a vida de Wolinski (entre outros), este sujeito nascido na Tunísia (!), seriamente engraçado, que aprendi a admirar na páginas de Libération e L

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Walter Falceta é jornalista