Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

É preciso resistir ao silêncio

Philippe Val, na época diretor do Charlie Hebdo, não conseguiu esconder sua indignação quando, em 2007 – comentando um processo contra o semanário satírico pela publicação de algumas charges de Maomé – alguém lhe perguntou se aquilo fora necessário. Não era uma provocação desnecessária e um ataque a uma minoria fraca e oprimida? O Charlie reproduzira as charges do jornal Jyllarnds-Posten, no qual eu trabalhava, juntamente com outras do profeta feitas por seus chargistas. Foi uma reação aos ataques às embaixadas dinamarquesas em algumas partes do mundo, em cumprimento às ameaças recebidas por nosso jornal. “Que tipo de civilização seríamos se não pudéssemos zombar, ridicularizar e rir dos que explodem trens e aviões e assassinam inocentes?”, respondeu.

A pergunta deve ser reiterada com renovada intensidade depois das mortes na redação do Charlie. A sátira é uma das maneiras pelas quais uma sociedade aberta responde à violência, às ameaças, à barbárie. A sátira é pacífica, mesmo quando fere. Ela não mata, mas ridiculariza e expõe publicamente aquilo que os outros querem manter oculto. Evidentemente, jamais uma charge valerá a vida de uma pessoa que seja. O problema é que alguns insistem nessa ideia.

Quantas ameaças e ataques terroristas deverão ocorrer antes que os “fundamentalistas do insulto” ou os que se consideram investidos do direito absolutista de não serem ofendidos compreendam que, defendendo esse direito, equiparando absurdamente palavras infelizes a ações infelizes, estão servindo à tirania? As mortes de Paris constituem o trágico clímax de mais de 25 anos de debate, na Europa, sobre a liberdade de expressão e os seus limites.

Começou com Salman Rushdie, que em 1989 foi obrigado a se esconder depois que as autoridades religiosas iranianas conclamarem todos fiéis muçulmanos a assassinar o escritor por algumas páginas do seu romance Os Versos Satânicos.

Contra a corrente

Desde então, os casos se sucederam. A maioria dizia respeito a como tratar publicamente o Islã numa democracia. Mas houve episódios semelhantes que envolveram sikhs, hindus, ortodoxos, cristãos, nacionalistas e todo tipo de grupos que insistem em proibir que se faça referência ao que eles consideram ofensivo.

Tanto Charlie quanto Jyllands-Posten foram obrigados a ir à Justiça. Fomos absolvidos. Numa democracia regida pelo império da lei, as decisões do tribunal devem ser respeitadas, mesmo quando discordamos do resultado. Esta é uma das maneiras pelas quais resolvemos os conflitos. A outra é o debate aberto.

Por isso, é vergonhoso que tantas vozes tenham tentado ir além da insinuação de que muitos outros europeus que foram ameaçados ou assassinados nos últimos anos haviam pedido isso de certo modo. Até mesmo um respeitável jornal como The New York Times escreveu na época que as charges publicadas no Jyllands-Posten desencadearam a violência no mundo muçulmano.

O Paquistão e muitos outros países muçulmanos chegaram a um ponto em que insultar, zombar ou ridicularizar o profeta por meio de palavras ou desenhos são atos punidos com a pena de morte, a mesma punição reservada ao assassinato e ao terrorismo. Nas últimas décadas, a busca do reconhecimento da própria identidade e a luta por um espaço público isento de ofensas contribuíram para a difusão dessa maneira de pensar.

O Charlie Hebdo foi talvez a única publicação europeia que, apesar das ameaças e de ataques incendiários, insistiu no direito de continuar zombando de todas as religiões. Seus alvos foram tanto o papa quanto o profeta. A publicação se respaldava numa tradição arraigada em que nada é sagrado. Uma tradição que depois da Reforma, e particularmente durante o Iluminismo, continuou crescendo lado a lado com a tolerância, a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. Se eles se limitassem a satirizar o cristianismo, os políticos e o papa, se não tivessem irritado o Islã, estariam vivos. Mas não fizeram isso. Eles continuaram fazendo o seu trabalho.

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Flemming Rose, do Global Viewpoint; era editor de Cultura do Jyllands-Posten em 2005-2006 quando encomendou as charges do profeta Maomé que desencadearam revolta