Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um editorial contra os direitos da criança e do adolescente

Em pleno domingo de carnaval, acordei com aquele sentimento de buscar as melhores opções dos blocos infantis, pois minha filha está com três anos. Quando vou folheando o jornal O Globo, alguns minutos depois me surpreendo, já imerso em indignação, com o editorial do dia: “ECA não recupera menor infrator e desprotege sociedade”.

Com o subtítulo “Paternalismo do Estatuto, curva ascendente de apreensão de jovens envolvidos com o crime e índices pífios de correição põe em xeque a eficácia da lei criada em 1990”, o editorial já aponta que a posição que o jornal manifestará será no sentido contrário à defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes.

A violação de direitos pelas famílias, sociedade e Estado na garantia dos direitos de crianças e adolescentes é continuamente vulgarizada por abordagens midiáticas como esta. Porém, desta vez, minha formação acadêmica fez soar um alarme dos mais altos pelo espaço em que esta irresponsabilidade hoje passa a ocupar: um editorial. Um editorial reflete a opinião do meio de comunicação e, neste caso de O Globo, de um poderoso conglomerado de comunicação que tem papel preponderante na formação da opinião pública do Brasil. Comecemos a considerar alguns limites estabelecidos pelos próprios Princípios Editorias de O Globo. Segundo estes, um editorial deve traduzir a opinião do seu Conselho Editorial, formado por membros da família Marinho e alguns convidados, não refletindo necessariamente a opinião dos demais jornalistas do jornal. Este precisa apenas garantir os três atributos de qualidade: isenção, correção e agilidade.

É possível afirmar que, no caso de um editorial, a isenção e a agilidade teriam uma menor importância ampliando consequentemente o peso da correção nos critérios de qualidade. Apesar disso, todo conteúdo é balizado exclusivamente por dados do “Novo Degase” (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), que tem “a responsabilidade de promover socioeducação no Estado do Rio de Janeiro, favorecendo a formação de pessoas autônomas, cidadãos solidários e profissionais competentes, possibilitando a construção de projetos de vida e a convivência familiar e comunitária”. Traduzindo, é o braço do Estado no cumprimento das medidas socioeducativas.

“A redução do limite de inimputabilidade”

Mas por que os dados do “Novo Degase” não podem promover a correção? Os princípios de qualidade do próprio jornal expressam objetivamente que para haver a correção é preciso uma vasta investigação, checando-se o máximo de fontes. Neste caso, uma simples apuração levaria os responsáveis pelo editorial ao CEDCA – Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente e/ou à Defensoria Pública, o primeiro por ser o responsável pela gestão e deliberação de todo política para criança e adolescente no Rio de Janeiro; e o outro, o responsável por promover acesso à justiça de maneira gratuita à população pobre. Chegando a estes atores, protagonistas no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e Adolescente teriam imediato conhecimento dos relatos de tortura dentro de muitas unidades do “Novo Degase”, por exemplo. Certamente ouviriam que para estes jovens chegarem ao cumprimento de medidas socioeducativas, muitos dos seus direitos foram e continuam sendo violados. Ouviriam também que estes jovens são pobres e negros em maioria. E possivelmente iriam checar que a redução da maioridade penal seria o encarceramento de uma população específica (negros, pobres, crianças e adolescentes) que vem tendo uma ampla gama de direitos violados.

Ainda segundo os Princípios Editorias de O Globo, a agilidade se justifica apenas pela rapidez de informar compensada por desdobramentos igualmente ágeis formando um conteúdo fragmentado, mas próximo da realidade. Definitivamente não é o caso dos editoriais que possuem tempo de sobra para amadurecer uma opinião antes de serem publicados.

Mesmo que em menor escala, a isenção poderia ajudar muito num editorial que estivesse em busca da verdade, na busca da opinião comum. O reconhecimento da isenção como um mito pelo Globo é significativo, porém insuficiente. Quando forma uma opinião editorial a partir de apuração rasa, com dados questionáveis fruto de apuração preguiçosa ou que tenham objetivo de exercer função retórica para exclusivamente persuadir, o jornal, a partir de mitos, apaixonadamente conclui: “O país precisa ter a coragem de contemplar mudanças cruciais, como a redução do limite de inimputabilidade, de modo a adequar o ECA aos novos tempos.”

Retrocesso histórico

O equívoco do editorial está na insistência por manifestar uma posição passional, caberia outro artigo que investigasse a hipótese de uma posição ideológica, que parece cegar os garantidores do bom emprego das técnicas jornalísticas com base nos princípios firmados e declarados pela tradição do bom jornalismo e principalmente pelos princípios editorias manifestados pelo Globo.

Práticas dignas de um “foca”, daqueles que chegam às redações parecendo estar num profundo sonho, ao entrincheirar-se de um lado com o poder das palavras e publicidade e deixar do outro o historicamente desprovido Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Entre tantos outros erros, afirma que o ECA é de “meados da década de noventa”, quando é de 1990. Atribui ao Brasil o protagonismo deste “ambicioso propósito”, quando é fruto de uma construção que se inicia no século 18 junto com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em seguida afirma que está dada a incapacidade “do poder público cumprir” suas obrigações da proteção integral quando não é exclusividade do poder público e este é um dos pontos estruturantes do ECA por comprometer todos com a proteção integral, inclusive os meios de comunicação. Repete o já popular “Assim como a Constituição Federal ou Constituição Cidadã, o ECA vai de encontro ao populismo e descentraliza o poder as responsabilidades da proteção integral apoderando todos na garantia destes direitos”.

A branda maioridade penal e a falta de previsão de deveres a criança e adolescentes seriam os principais razões por estes incorrerem os mais diversos crimes. Como nos tempos da ditadura militar em que recentemente o jornal reconheceu o erro pelo apoio, o editorial sustenta mais uma vez uma posição que negligencia a história dos Direitos Humanos, da humanidade, do Estado de Direito, da democracia, e se coloca como violador de direitos da criança e do adolescente hoje ao lado do Estado, das famílias e da sociedade que não promovem a proteção integral. O agravante aqui não é apenas a violação pela negligência, está em ir além e atacar os direitos e apontar como solução o retrocesso histórico anulando o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos de necessidades de proteção especiais.

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Juliano Sebastian é consultor de Comunicação Política e militante dos Direitos da Criança e do Adolescente