Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A aplicação da lei de licitações no processo eleitoral

A compra através de licitação de bens e serviços de informática vem merecendo constantes aprimoramentos legislativos, ante a necessidade de regras específicas para respaldar a atividade da administração. Nesse escopo estão incluídas as licitações da Justiça Eleitoral.

Além da Lei nº 8.666/93, Estatuto da Licitação e de Contratos Públicos, outras normas de tratamento peculiar são aplicáveis às compras pelo administrador eleitoral, principalmente a Lei nº 8.248/91, regulamentada pelo Decreto 1.070/94, a Lei nº 10.176/01 sem prejuízo de análise sob a égide da Emenda Constitucional nº 6/95 e ainda da Lei 10.520/2002.

Regra específica está contida no artigo 45, § 4º, da Lei 8.666/93, donde a licitação de bens e serviços de informática somente pode ser realizada com adoção do tipo ‘técnica e preço’. A Lei 11.077/04, com a redação do § 3º incorporado ao art. 3º da Lei 8.248/91, permitiu a compra de bens e serviços ‘comuns’ de informática e automação sob o tipo de licitação ‘menor preço’, através da modalidade Pregão.

É comum encontrar na seara eletrônica eleitoral, em um único edital, várias modalidades licitatórias dentre as previstas no artigo 22 da Lei 8666/93 conjugada num tipo específico que em geral é de ‘técnica e preço’. Essa opção dificulta muito a análise do processo e demanda minuciosa separação de cada figura para delimitar a regularidade ou não da licitação.

Empresa sem capacidade técnica continua apta a prestar serviços

A licitação 076/2009, em curso no TSE, aclara bem a situação. O seu edital prevê a modalidade /concorrência /para /registrar preços/ para eventual compra de 250 mil urnas no tipo ‘/técnica e preço/’, através de /pregão presencial/ com fase de /testes técnicos dos produtos/ e adjudicação do contrato ao final do certame.

Sem embargo, o administrador eleitoral simplesmente ignora que para os fins do disposto no § 3º, do art. 3º, da Lei 8.248/91, o pregão para compra de bens e serviços comuns de informática impede a participação de empresas que não demonstrem possuir o conjunto mínimo de operações no estabelecimento fabril que caracteriza a efetiva industrialização do produto.

No certame 076/09 se encontra a evidência dessa ilegalidade, pois nele restam duas empresas que há anos, reiteradamente, prestam serviços à Justiça Eleitoral, mesmo não possuindo parque fabril ou postos fixos em estados da Federação, o que as faz sub-contratar os serviços de outras empresas quando vitoriosas na licitação.

Direcionando o foco para a capacidade técnica, temos que uma das empresas, conhecida fabricante de máquinas de votar, foi duramente afetada por problemas sérios em seu país-sede. Seu produto foi rejeitado e até proibido em alguns países e como se avolumavam prejuízos se desfez desta área para dedicar-se a outros ramos do mercado tecnológico. Mesmo sem capacidade industrial no Brasil e sem capacidade técnica no seu país de origem, essa empresa continua apta a prestar serviços e continua participando de concorrências públicas junto a Justiça Eleitoral para fabricação de urnas eletrônicas.

Perfeita sintonia com o ‘consórcio brasileiro’

A segunda empresa participante da licitação 76/09 iniciou a prestação de serviços para fornecer mão-de-obra terceirizada para o TSE em 2002. Sua constituição, advinda de uma empresa americana, deu-se em 05/2001, mas para melhor explicitar sua situação dentro do TSE será oportuno voltar às eleições presidenciais do Equador no ano de 2006.

Como cediço, o TSE equatoriano contratou essa mesma empresa para apuração rápida dos votos das eleições presidenciais no ano de 2006, naquele país. Para fazer frente ao trabalho, ela consorciou com uma outra de telecomunicação, cujos sócios e endereço são comuns a ambas. Interessa frisar que o contrato com o TSE do Equador foi assinado por um servidor de alto escalão, cedido, até então, há mais de 10 anos ao TSE brasileiro – e mais, fez parte do grupo o ex-secretário de Informática do nosso Tribunal.

Inobstante o status técnico do grupo no Brasil, o consórcio brasileiro não conseguiu cumprir o contrato no Equador que, ao final, revelou-se irregular, posto que nenhum dos executivos que lá estavam possuía capacidade ou vínculo oficial com a empresa contratada e o consórcio sequer existia. As informações encontram-se aqui e aqui.

Preocupam sobremaneira as notas divulgadas pela Comisión de Contról Cívico contra La Corrupción (CCCC) equatoriana indicativas de que os observadores enviados pela OEA para acompanhar as eleições presidenciais no Equador estavam em perfeita sintonia com o ‘consórcio brasileiro’, pois não fosse a imunidade diplomática teriam sofrido das mesmas sanções.

Coerência e limites previstos

Sob todos os ângulos que se avalie, as duas empresas que restam no certame 076/2009 não lograram êxito em tarefas similares, mas mesmo assim continuam aptas para o processo eleitoral nacional, o que toma relevância ante os termos do disposto no § 3º, do art. 3º, da Lei 8.248/91, bem como no artigo 37 da Constituição Federal.

Não deve ser esquecido que em 2005 a segunda empresa citada foi beneficiada com mais cinco anos de contrato com a Justiça Eleitoral para fornecimento de mão-de-obra, quando ainda era secretário de Informática um dos ‘executivos extra-oficiais’ levados ao Equador.

Noutro benefício extra-legal foi-lhe disponibilizada uma sala no andar térreo do prédio do TSE com direito à fixação de uma placa de identificação exclusiva como se ali fosse seu escritório particular, inobstante dentro de um prédio da União.

Exacerbado pragmatismo conjugado com os fatos declinados, levaria a questionar se a mesma chave que abriu as portas do Equador se poderia aplicar e coadunar com o princípio da impessoalidade, obrigatório em qualquer licitação. A resposta virá com o resultado que será divulgado.

Enquanto isso, para aprimorar as convicções pessoais façamos uma reflexão utilizando o norte do artigo 37 da carta magna brasileira com o privilégio da idoneidade administrativa para avaliar as situações postas com as licitações em andamento na Justiça Eleitoral. Como exemplo, tomemos a licitação 76/09 aberta para compra de 250 mil novas urnas biométricas, quando há necessidade de apenas 15 mil e o TSE já possui seis vezes mais, ou seja, 83 mil.

Ou ainda: em maio de 2009, o TSE descartou quase 1 milhão de disquetes e através da licitação 118/09 estaria comprando em dezembro 1,16 milhão deles. Comprar 1,1 milhão de disquetes amarelos se apenas 200 mil urnas os utilizarão (um por urna) em 2010. Contratar a manutenção de 340 mil urnas pela licitação 105/09 se 200 mil delas não serão mais utilizadas em eleições oficiais.

Por certo, a especificidade das licitações feitas pelo TSE para compras e serviços, deve guardar coerência e limites principiologicamente previstos nas várias figuras do artigo 37 da Constituição Federal perfeitamente compatível com a segurança, lisura e importância da função que exerce nos desígnios da nossa democracia.

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Advogada especialista em auditoria do processo eleitoral