Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A censura, sob nova direção

O que a Supremo Tribunal Federal decidiu, hermenêutica à parte, é o seguinte: o cidadão Fernando Sarney, membro do clã político de José Sarney, que o acaso tornou Presidente da República e que há 40 anos é potentado político do Estado que tem o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano do País, tem todo o direito de manter em segredo perante a opinião pública todas as tenebrosas transações que andou fazendo para tirar proveito particular do uso dos bens públicos.


É disso que se trata, filigranas jurídicas à parte.


A Suprema Corte de Justiça do país, a quem cabe dar a última palavra em questões constitucionais, abdicou de suas altas prerrogativas e preferiu esgueirar-se entre as tecnicalidades para decidir não decidir, como se fosse uma terceira vara de comarca, que engasga nas alíneas e parágrafos dos textos enviesados das leis e remete a substância das decisões para as calendas gregas.


Ao fugir da decisão vital e concentrar-se na periferia da avaliação dos procedimentos processuais, o Supremo abdicou de sua missão final, que é a de fazer Justiça.


Se os advogados do jornal Estado de S.Paulo abordaram a questão de forma processualmente equivocada, na avaliação da maioria do plenário do STF, a questão central – que é a questão constitucional – ficou intocada: a censura foi mantida. E ela foi mantida em função da própria decisão do Supremo. Por mais que alguns ministros queiram tergiversar em torno da exatidão da palavra, o que resta ao final de tudo é o efeito da decisão: o jornal está impedido de publicar uma informação de interesse público, e isso tem nome: censura. E a Constituição veda expressamente a censura.


‘Não há censura, há aplicação da lei’, disse um dos ministros, referindo-se à existência de legislação que proíbe divulgação de informações de inquéritos policiais que correm sob segredo de justiça.


Caso acintoso


Evidentemente não cabe aos jornais zelar pelo sigilo do inquérito policial; se há vazamento do inquérito sigiloso, as autoridades policiais e judiciais que se encarreguem de descobrir e responsabilizar quem vazou. O jornal não pode abrir mão de sua responsabilidade de publicar notícias que, embora envolvendo direitos individuais de um acusado, afetam diretamente o bem público, principalmente se há indícios evidentes de que ele está sendo lesado.


Há uma clara contradição entre uma lei menor e uma lei maior. Quanto da lei menor interfere no espírito da lei maior? Não era isso que os juízes do Supremo tinham que julgar? O sigilo de um inquérito policial pode ser mais importante do que a lei que proíbe a censura? Proibir, de antemão, a publicação de qualquer notícia sobre um fato ligado a determinado assunto, antes que o próprio fato se concretize, não configura censura prévia?


Além do mais, há uma questão que se sobrepõe a tudo isso e que também merece uma discussão: é justo que os direitos individuais do sr. Fernando Sarney se sobreponham ao direito que a coletividade tem de saber como é que ele, na qualidade de membro de uma família influente e atuante na esfera pública, trata o dinheiro e as instituições que não pertencem a ele ou à sua família, mas à coletividade ?


Por isso, ao enroscar-se nas filigranas jurídicas, o STF abriu mão de julgar um caso acintoso de restrição à liberdade de imprensa e deu um inesperado alento aos que sonham com a instituição de uma censura seletiva que transforme os meios de comunicação em caudatários dos poderosos do momento.

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Jornalista