Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A cobertura no caso Renan Calheiros

Há quatro semanas, as suspeitas de corrupção que envolvem o presidente do Senado Renan Calheiros estão em destaque nas revistas, jornais e noticiários de rádio e TV. Veja fez as primeiras denúncias sobre o caso e, na seqüência, o Jornal Nacional incumbiu-se de levantar provas concretas sobre a inconsistência das explicações oferecidas pelo senador alagoano. O primeiro veículo adotou uma postura tida como denuncista e, o segundo, optou por uma apuração mais criteriosa e investigativa. As denúncias contra Renan Calheiros foram o tema do programa Observatório da Imprensa na TV exibido na terça-feira (26/06), que discutiu os padrões de cobertura adotados no caso.


No editorial que abre o programa, Alberto Dines lembrou o desinteresse da mídia em noticiar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, na véspera, havia decidido arquivar a ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra a portaria que institui a classificação indicativa para a programação de TV. Sobre o caso Renan Calheiros, Dines sublinhou ter sido a liberdade e a responsabilidade da imprensa que permitiram a publicação de denúncias contra o senador, embora produzidas a partir de distintos modelos jornalísticos [leia abaixo o editorial ‘Modelos antagônicos de jornalismo’].


Participaram do programa, em São Paulo, a procuradora regional da República Luiza Cristina Frischeisen; em Brasília, a repórter da Folha de S. Paulo Andrea Michael; e no Rio, o repórter do Globo Chico Otávio e o vice-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Marcelo Beraba.


Declarações de amor


A quantidade de escândalos na política brasileira é um desafio para imprensa. A cobertura se depara freqüentemente com questões éticas sobre como, quando e de que maneira as informações devem ser divulgadas. O caso Renan Calheiros é exemplar para expor as diferentes maneiras de atuação da mídia.


Tudo começou em 26 de maio, quando a revista Veja informou que o senador teria despesas particulares pagas pelo lobista Cláudio Gontijo, da construtora Mendes Junior, entre as quais a pensão que destinava à jornalista Mônica Veloso, com quem teve uma filha fora do casamento. A revista, contudo, não apresentou provas convincentes do que afirmava. No Senado, Renan disse que provaria seu não envolvimento, mas não conseguiu apresentar contraprovas capazes de acabar com as suspeitas.


Os extratos bancários de Calheiros foram entregues ao Senado e parlamentares da oposição deram início a um processo por quebra do decoro parlamentar. A mídia acompanhou o caso e, na edição seguinte à da primeira denúncia, a jornalista Mônica Veloso deu uma entrevista à Veja confirmando o recebimento regular de dinheiro das mãos do lobista.


Logo depois houve um esforço conjunto dos aliados do senador para tentar barrar o processo na Comissão de Ética do Senado. Mas uma reportagem apresentada pelo Jornal Nacional, em 14 de junho, revelou irregularidades na documentação apresentada por Calheiros para justificar a origem do dinheiro que transferia para Mônica – sempre em espécie e por intermédio de Cláudio Gontijo. O JN mostrou que recibos de venda de gado apresentados por Calheiros foram desmentidos pelos supostos compradores.


A pressão da opinião pública cresceu. No Congresso, um jogo de poder movimentou os aliados do senador: o relator do processo na Comissão de Ética, Epitácio Cafeteira, tentou inocentar Calheiros e arquivar o caso sem sequer colher depoimentos, mas falhou no seu intento. O grupo de aliados de Calheiros partiu então para ameaças de denúncias contra parlamentares da oposição.


Em paralelo a esse movimento, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre a impunidade no Brasil, historiando os sucessivos escândalos políticos vis-à-vis a lentidão da Justiça em puni-los.


No domingo (24/6), os jornais Folha de S.Paulo e o Estado de S.Paulo publicaram, respectivamente, entrevistas com a agora ex-namorada e com a mulher oficial do senador, ambas declarando seu amor a Calheiros, que foi colocado no papel de vítima. As denúncias de corrupção se transformaram num folhetim.


Capacidade de investigação


Dines abriu os debates apresentando a jornalista da Andrea Michael, da Folha, repórter de Política em Brasília, e a ela perguntou, a partir da referência dos dois modelos (Veja e JN) de cobertura no caso Renan, como seu jornal começou a apurar o escândalo. Andrea respondeu que o importante é não brigar com o fato, ou seja, não cair no ‘denuncismo’ e se pautar pela verdade factual. ‘Desde o início, a nossa batalha era ter acesso a documentos que nos possibilitassem buscar o fio de uma meada que não fosse a da relação extraconjugal’, disse. ‘Nossa busca realmente era partir para uma linha semelhante a que o Jornal Nacional seguiu’, ou seja, aquela ‘que você não pode refutar, [pois] são fatos’.


Dines perguntou a Marcelo Beraba: ‘Com sua experiência como ombudsman, como vê a matéria da Folha – eu diria um pouco banal – sobre a pivô da história? Isso não é uma forma de carnavalizar uma denúncia que abalou a República quatro semanas atrás?’.


Beraba não considerou que a matéria foi prejudicial às investigações. Disse que desde a reportagem da Veja a imprensa tem atuado de uma maneira muito positiva, embora o ponto alto tenha sido a matéria do Jornal Nacional. Mas acrescentou que vários jornais fizeram investigações próprias. ‘Esse é o primeiro caso em que saímos das asas do Ministério Público, das CPIs, da Polícia Federal, do Judiciário, para ter uma investigação própria da imprensa’, analisou o jornalista. E ressaltou que a entrevista de Mônica Veloso na Folha não apagou a gravidade das denúncias.


Dines se dirigiu a Luiza Cristina Frischeisen e afirmou que ela, como integrante do Ministério Público Federal, não está interessada em paradigmas éticos do jornalismo, mas nas denúncias que possibilitem o Ministério Público dar prosseguimento ao caso. E perguntou: ‘Como vê esse confronto de técnicas jornalísticas que vimos nas últimas semanas?’.


Luiza Cristina comentou que o jornalismo investigativo é muito importante. E que o caso de Renan é representativo porque ele só começou a partir de uma investigação da imprensa, sobretudo da Veja, TV Globo e Folha, que foi até Maceió para comprovar a versão – de Renan Calheiros – sobre a venda de bois aos açougues. ‘Não só do ponto de vista de representante do Ministério Público, mas de leitora da Folha, do Estado e do Globo, é muito importante verificar que esses jornais têm uma capacidade de investigação que independente da Justiça, do Ministério Público ou da polícia. Esses meios de comunicação são capazes de ir atrás de determinados fatos e comprovar a veracidade de versões tanto de um lado quanto do outro’, avaliou.


Informações próprias


O apresentador do OI na TV comentou com Chico Otávio – repórter especial do Globo e autor das matérias sobre impunidade – que o padrão jornalístico adotado pelo jornal carioca é mais parecido com o americano e distante do estilo retórico francês, já que investiga as denúncias antes de publicá-las. ‘Como você vê esse confronto de estilos jornalísticos?’, questionou Dines.


Chico Otávio esclareceu que é o autor da série de reportagens sobre impunidade, mas nessa apuração trabalhou com uma equipe. Disse que havia muita pressão, inclusive de tempo e da concorrência. Segundo o jornalista, isso leva a equipe a atropelar alguns procedimentos que são importantes, mas o que tem sido determinante, segundo ele, é o cuidado na apuração e na coleta de documentos – ‘até por que existe a indústria do dano moral’, lembrou. ‘[Esses] são fatores que nos tornam cada vez mais cuidadosos.’


Na seqüência, Dines comentou sobre o medo de o jornalista ser ‘furado’ na divulgação da notícia. E deu o exemplo da Veja, que teve com exclusividade a informação sobre a audiência final que decidiria o valor da pensão que Renan Calheiros pagaria a Mônica Veloso. A revista antecipou a circulação em um dia para não correr o risco de ser ‘furada’ por outros veículos. ‘Veja correu para não perder o furo. Mas será que se a revista tivesse esperado, e apresentado as evidências que apresentou duas semanas depois, o efeito não seria melhor, maior e mais profundo?’, indagou o apresentador a Andrea Michel. ‘Certamente o efeito teria sido mais contundente e talvez até inquestionável’, disse Andrea. ‘Na primeira reportagem, a pauta estava quase efetivada, mas não foi efetivada.’


Dines comentou que Marcelo Beraba é um ‘ardoroso’ defensor da contribuição de Veja no caso. O apresentador pediu ao jornalista que explicasse sua posição sobre o desempenho da revista. Beraba afirmou não haver dúvidas quanto à importância das informações divulgadas por Veja. ‘O presidente do Senado tem uma relação direta com um lobista, a ponto de esse lobista, durante um período enorme, colocar à sua disposição um flat, pagar até março o aluguel de um apartamento em Brasília do senador, pagar a pensão de 12 mil reais para a filha do senador, ajudar nas campanhas do senador e da família. Só esse conjunto de informações, que são verdadeiras e não foram desmentidas, foram importantíssimas’, disse o ex-ombudsman da Folha. E avaliou que isso fez com que Calheiros prestasse contas à sociedade.


Beraba comentou ainda que nenhuma revista que tivesse as mesmas informações de Veja deixaria de publicar o que ela publicou, e que ‘as informações que [Veja] trouxe são próprias porque ela não as recebeu de bandeja’.


Tempos distintos


Chico Otávio lembrou o que sofreu quando precisou passar duas semanas em Brasília para cobrir o escândalo do mensalão. O repórter do Globo explicou que, naquela apuração, o que era exclusividade às vezes durava poucos segundos, e que hoje as fontes são extremamente profissionalizadas, conhecem os jornalistas e seu timing. ‘Elas [as fontes] pressionam demais. Nessa hora é preciso pesar se vale mais a pena publicar logo ou esperar e tomar o devido cuidado’, afirmou. ‘É difícil: é preciso ter uma equação para atender a demanda e a pressão da fonte e publicar algo com consistência. Sofri demais’, desabafou.


Dines observou que tanto a imprensa quanto o Ministério Público e a Polícia Federal estão sendo muito questionados, sobretudo pelos políticos que estão muito incomodados nesse momento. E perguntou à procuradora Luiza Cristina Frischeisen se não seria necessário um pouco mais de cuidado por parte dessas instituições na divulgação de informações para a mídia. ‘Não seria importante que o denuncismo fosse refreado em nome da investigação?’.


A procuradora avaliou que a forma e o momento em que Ministério Público deve se pronunciar são diferentes daqueles em que o jornalismo deve fazer as matérias. E explicou que o papel do Ministério Público é denunciar, enquanto o do jornalismo é o de levar a informação ao público. ‘O argumento do denuncismo geralmente é usado pelo político, que não vai querer ver suas atividades ilícitas expostas’.


Alberto Dines disse à procuradora que a intenção do programa é exatamente defender o papel da mídia – se assim não fosse, o OI na TV não estaria há nove anos tratando do assunto. ‘Queremos estabelecer padrões de excelência para que o trabalho da imprensa não seja questionado.’, afirmou. ‘O que não se quer é que a mídia entre num processo de descrédito.’


Luiza Cristina comentou, então, que há casos em que a mídia deve ser mais cuidadosa, como o da Escola Base, em São Paulo, mas em outros o processo de investigação da imprensa é muito importante, mesmo que seja feito antes do Ministério Público. E isto se deu no caso de Renan Calheiros, no qual ainda sequer havia processo. A procuradora reiterou que o tempo de trabalho de ambos, mídia e MP, é diferente.


Marcelo Beraba afirmou que, no caso específico de Renan Calheiros, estava de acordo com Luiza Cristina.


Fora da rotina


Uma telespectadora de Caldas Novas (GO) perguntou a Alberto Dines: ‘A mídia não se cansa de cobrir escândalos, mas por que a sociedade não tem participação mais efetiva na cobrança de providências? A mídia está perdendo o poder de influenciar a sociedade?’.


Dines lembrou que a sociedade atua, fala e intervém de diversas formas: eleições, ações populares e através da mídia. ‘Ela [a sociedade] é compradora de jornais, ela vê TV e ouve rádio e, portanto, escolhe. É por isso que acho tão importante que haja diferenciação entre os vários procedimentos jornalísticos’, justificou. ‘A mídia deve ser diversificada, antagônica. Por isso tomamos esse caso, com padrões diferentes de reportagem, para mostrar para a sociedade que ela tem que aprender a discernir.’ E acrescentou: ‘O Observatório da Imprensa foi criado para que a população possa distinguir entre o bom e o mau procedimento da mídia’.


Na rodada final de comentários dos participantes, Andrea Michel avaliou que a matéria feita por Veja não foi denuncismo, mas comentou que a cobertura sempre pode ser melhor. Referiu-se ainda ao jogo de interesses do poder: disse que o repórter sempre deve estar consciente de que ele existe, mas que isso não anula os fatos.


Luiza Cristina Frischeisen observou ser importante que a mídia noticie os fatos quando eles acontecem, mas é também importante que ela acompanhe o andamento dos processos. Chico Otávio disse que a série de matérias do Globo sobre impunidade não foi provocada por nenhum acontecimento novo, mas que o impressionou o interesse do leitor: ‘O que mostra como o problema incomoda a sociedade brasileira’.


Marcelo Beraba lembrou que no caso Renan Calheiros a imprensa teve um trabalho próprio e avançado, mas que isso não é a rotina: ‘Falta tradição num trabalho de investigação e levantamento de dados’, afirmou.


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Modelos antagônicos de jornalismo


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 422, exibido em 26/6/2007


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


A classificação indicativa para a programação de TV é justa ou é uma tentativa de reviver a censura e cercear a liberdade de criação? Na segunda-feira (25/6), o STF decidiu arquivar a ação direta de inconstitucionalidade proposta pela OAB. A decisão do STF teve o voto da presidente, Ellen Gracie. Você viu esta notícia nos jornais de hoje, terça? Apenas a Folha de S.Paulo publicou uma notinha de 15 linhas. Mas as manifestações contra a portaria do Ministério da Justiça têm sido noticiadas com grande destaque. Já tratamos do assunto e voltaremos a ele.


O caso Renan Calheiros domina o noticiário há quatro semanas. Foi iniciado com uma matéria de capa da revista Veja, onde o presidente do Senado era acusado de pagar a pensão a uma ex-namorada com recursos de uma empreiteira. Veja não apresentou provas.


Dias depois, o Jornal Nacional da TV Globo comprovou que eram forjados os recibos e notas fiscais que o senador Renan havia apresentado para provar sua renda. A acusação foi acompanhada de farta documentação.


O senador Renan e seus aliados talvez consigam engavetar ou minimizar o episódio, mas a sociedade não vai esquecer estes dois paradigmas de jornalismo – e, através deles, o papel da imprensa numa sociedade democrática. Sem Veja, o episódio seria ignorado como tantos outros. Mas, sem a investigação do Jornal Nacional, a defesa do senador acabaria superando as denúncias de Veja, mantidas por uma ex-namorada do senador, porém sem provas.


São dois modelos antagônicos de jornalismo, cujo exercício só é possível quando a imprensa é livre. Livre e responsável.

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Jornalista