Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

A crise econômica na imprensa

Há mais de dois anos fala-se na formação e no eventual estouro da bolha do mercado imobiliário norte-americano. Até o começo deste mês, a imprensa e os analistas especializados em economia afirmavam majoritariamente que não havia motivos para que as pessoas se preocupassem com a eventualidade de uma grave crise econômica (o eventual estouro daquela bolha seria incapaz de causar uma crise econômica mundial como ocorreu, por exemplo, com a crise asiática da segunda metade da década passada), que os fundamentos da chamada ‘economia real’ mundial estavam sólidos e, portanto, que não ocorreria turbulência na economia global. A partir do comportamento do mercado e dos índices financeiros no começo deste mês, sobretudo entre os dias 8 e 16, o tom mudou rapidamente – embora alguns setores na imprensa ainda tratem de afirmar que o abalo não chegará à ‘economia real’, parte considerável da imprensa passou a adotar um tom mais cauteloso.

Em primeiro lugar, é preciso observar a inadequação na expressão empregada: os economistas usam comumente ‘economia real’ para designar a economia produtiva, distinguindo-a da economia financeira e da economia monetária. A expressão é usada como se a economia produtiva fosse mais real do que o mercado financeiro ou que a política monetária, como se se tratassem de diferentes instâncias que convivessem mas que, apesar de interagirem cada uma com as demais, fossem efetivamente separadas.

A bolha imobiliária, todos sabemos, formou-se a partir da expansão do crédito para as pessoas comprarem ou incrementarem seus imóveis: dinheiro farto a juros baixos. Essa expansão foi tão ampla que muitos agentes do mercado passaram a realizar empréstimos considerados de altíssimo risco: isso se ampliou a tal ponto que até imigrantes ilegais passaram a conseguir empréstimos facilmente. O resultado desses empréstimos de alto risco é a incapacidade dos tomadores desse empréstimo de pagarem as prestações devidas: os créditos eram cedidos a juros variáveis, de modo que as prestações inicialmente baixas aumentaram a cada ano devido aos aumentos da taxa de juros efetuados pelo Federal Reserve nos últimos anos. Em conseqüência, as instituições financeiras que bancaram os empréstimos têm sua solidez econômica afetada. Além disso, é preciso ressaltar que, como esses títulos são renegociados entre as instituições financeiras, o cenário se desenvolveu chegando a um ponto em que o mercado não sabe mais quais instituições financeiras detêm os títulos desses empréstimos.

Excesso de liquidez, ameaça de recessão

De fato, os problemas decorrentes da imensa expansão do crédito imobiliário norte-americano em si não são capazes de criar uma turbulência econômica mundial. Discutir se o estouro da bolha imobiliária pode ou não ser a causa da próxima grande crise econômica mundial é uma análise que inverte a relação de causa e efeito. É preciso analisar o assunto desfazendo essa inversão. A bolha imobiliária não é a causa de uma eventual crise: é, ela própria, efeito dos perigos que a economia norte-americana enfrenta há dez anos, sobretudo dos crescentes déficits interno e externo norte-americano.

Quando um país tem déficits crescentes, corre o sério risco de recessão e de deflação. O país, então, deverá – é a tendência, pode-se dizer, praticamente inevitável – desvalorizar sua moeda para tentar reverter esses déficits e combater a ameaça de recessão e de deflação. Os Estados Unidos efetivamente desvalorizaram sua moeda nos últimos anos, como todos sabemos. Como resultado, o país tem conseguido evitar nesses anos, como todos também sabemos, a recessão e a deflação. A ‘farra do dinheiro fácil’ – a expansão do crédito imobiliário que redundou nos empréstimos de alto risco – serviu para manter aquecida a economia interna norte-americana, movimentando a indústria de construção e as indústrias afins, gerando assim milhões de empregos.

No entanto, os déficits norte-americanos não diminuíram; pelo contrário. Apesar da atuação do Federal Reserve (desde seu presidente anterior, Greenspan), apesar de toda sua preocupação em evitar a recessão e a deflação e de sua meta de manter a inflação entre 1 e 2% ao ano, apesar da desvalorização da moeda norte-americana nos últimos anos, os déficits interno e externo aumentaram muito. Isso faz lembrar a observação que se fez a propósito de uma reunião de economistas republicanos que aconteceu entre a vitória de George W. Bush no Supremo Tribunal que o levou a suceder Bill Clinton na Presidência (não custa lembrar que quem venceu as eleições foi seu concorrente democrata, Al Gore) e a posse. Observando-se as discussões feitas por aqueles economistas republicanos, o comentário foi que eles seriam ótimos para administrar a economia do país nos anos 50 e começo dos anos 60, época em que eles fizeram suas graduações: o conhecimento de economia deles era apropriado para aquela época, mas totalmente inadequado para compreender a época de globalização contemporânea.

A essa eventual inadequação da equipe econômica de George Bush em lidar com um cenário econômico mundial novo, cabe acrescentar também o projeto político do governo Bush, que enredou boa parte dos esforços do país numa guerra infinda: pode-se, assim, entender como os Estados Unidos aumentaram os déficits interno e externo não obstante a preocupação (quase à beira da obsessão) de autoridades econômicas com a recessão e a deflação.

As relações de causa e efeito

Então, o estouro da bolha imobiliária não pode causar a crise sistêmica na economia norte-americana – crise sistêmica que, por sua vez, poderia ser a causa de uma crise mundial. Há comumente, nas análises feitas, uma inversão nas relações de causa e efeito: a bolha imobiliária é, ela própria, conseqüência dos problemas decorrentes dos desarranjos provocados pelos déficits interno e externo; ela é, em grande parte, conseqüência das estratégias formuladas pelo FED para combater os perigos de recessão e de deflação. O estouro da bolha não seria a causa, mas, justamente ao contrário, um dos resultados da crise sistêmica norte-americana.

Analistas saudaram a decisão do FED no dia 17 p.p. de reduzir a taxa de juros cobrada em empréstimos a instituições financeiras como demonstração de que o banco central norte-americano está pronto para socorrer o mercado caso a situação fique ainda pior. A providência do FED mostra efetivamente a intenção dele nesse sentido, mas é arriscado dizer que ele esteja preparado: há anos o FED tem se esforçado para impedir a recessão e a deflação, fazendo esforços para manter aquecida a economia do país, inclusive incentivando a expansão dos créditos, mas não consegue impedir aumento dos déficits.

Assim, a ameaça de recessão e de deflação levou o FED a tomar medidas, nos últimos anos, que causaram o chamado excesso de liquidez no mercado norte-americano. Esse excesso de liquidez levou ao ‘crédito fácil’ que causou os empréstimos de altíssimo risco. Esse cenário resultou na insegurança do mercado financeiro, causando, por sua vez, problema de liquidez – ou seja, num dos paradoxos dessa história, o excesso de liquidez inicial resultou num problema de liquidez. A providência do FED no último dia 17, visando a resolver esse problema, procurou sustentar a liquidez. Longe de resolver a bolha, a providência do FED a sustentou. Enquanto toda essa história se desenvolveu nos últimos anos, nada foi feito efetivamente para estancar o aumento dos déficits interno e externo. A providência do FED aparece, não como uma solução, mas como um paliativo.

Uma restrição e redução nos créditos implicaria perda do valor dos imóveis (o que já vem acontecendo em grau razoável e esse grau pode aumentar) e perda do valor das ações nas bolsas, afetando mais ainda o mercado financeiro. O resultado seria a diminuição sensível no consumo norte-americano. A desaceleração da economia norte-americana deve afetar, devido à redução das importações, o resto do mundo. A esse respeito, escreveu, no Estadão do dia 21 p.p., Ilan Goldfajn: ‘O cenário básico ainda é de desaceleração, e não de recessão’. Podia ter enfatizado o ‘ainda’.

A pujança econômica

É fato: a economia dos Estados Unidos não tem mais a pujança que já teve, sendo agora, estima-se, de 27% do PIB mundial, enquanto há dez anos atrás era significativamente maior, bem acima desse índice, e é possível, senão provável, que caia, muito brevemente, para menos de 25% devido à desvalorização de sua moeda; cabe lembrar que os déficits estão na raiz desse problema.

Assim, caberá possivelmente ao próximo governo norte-americano (possivelmente democrata? O atual governo republicano já vem conhecendo queda de popularidade devido tanto à guerra que não acaba quanto aos problemas econômicos decorrentes, em boa parte, das prioridades desse governo) resolver o desafio de crescimento econômico encarando de frente os déficits (cabe lembrar ainda que Bill Clinton deixou o governo com superávits) e os perigos de recessão e deflação.

Os Estados Unidos terão que encarar de frente, daqui em diante, seus déficits público interno e internacional: sua participação no PIB mundial possivelmente continuará caindo nos próximos anos, que deverão ser de reorganização de sua economia e o país talvez tenha que combater de maneira mais incisiva uma recessão e uma deflação que ele tem apenas se esforçado em evitar.

É preciso considerar, ainda, que grande parte dos títulos norte-americanos de dívida externa estão de posse dos principais países asiáticos (China, Japão, Taiwan e Coréia do Sul). Assim, esses países têm ajudado os Estados Unidos a lidar com seus déficits. Evidentemente, não interessa aos países asiáticos mais avançados e que têm mais se desenvolvidos ajudar a fomentar crise nos Estados Unidos justamente porque uma crise sistêmica nos Estados Unidos afetaria fortemente o mundo inteiro. Também é evidente, por outro lado, que quando os Estados Unidos, através de seu banco central, cortam a taxa de juros interna, nada está fazendo para estancar o aumento de seu déficit. Até quando aqueles países continuarão a sustentar a política econômica e a falta de crescimento da economia dos Estados Unidos?

Há, assim, mais um paradoxo nessa história: o aumento dos déficits norte-americanos, a ameaça de recessão e a desvalorização do dólar facilitaram os bons índices da economia mundial nos últimos anos (o grande crescimento de alguns países asiáticos, o crescimento confortável dos países europeus, a estabilidade econômica na América Latina), mas a persistência de todas essas condições da economia dos Estados Unidos pode gerar uma crise sistêmica afetando o resto do mundo. Agora, alguns analistas defendem que o resto do mundo não deve se preocupar com o crescimento ou não da economia norte-americana daqui para a frente.

O Prêmio Nobel

Este artigo já estava pronto quando eu acrescentei o que se segue nesta seção. O Prêmio Nobel da Economia, Edmund Phelps, argumentou semana passada tanto que os créditos imobiliários são pequenos perto do total de ativos financeiros mundiais, quanto que os Estados Unidos continuarão atraindo parcela significativa da poupança mundial (sobretudo dos países asiáticos), mas essa dinheirama, ao invés de ser dirigida para o mercado imobiliário, será redirecionada a partir de agora para outros setores de consumo do mercado interno norte-americano: assim, a economia norte-americana continuará sendo aquecida pelo mercado interno e a roda da prosperidade mundial dos últimos anos continuará girando sem ser afetada pela economia norte-americana. Em síntese, o excesso de liquidez nos Estados Unidos prosseguirá.

Ele nada disse sobre o aumento dos déficits, tópico decisivo. O que talvez se devesse considerar sobre o cenário suscitado por Phelps: para continuar incrementando o mercado interno (a partir de agora, em outros setores que não o imobiliário), o FED deverá continuar baixando os juros; para os Estados Unidos continuarem recebendo parcela importante da poupança internacional, será preciso continuar desvalorizando o dólar. Assim prosseguindo, mas sem resolver os problemas de déficits, os fluxos de dinheirama da poupança internacional para os Estados Unidos formarão outras bolhas em outros setores de consumo do mercado interno, aumentando ainda mais o problema geral da economia norte-americana, longe de resolvê-lo.

Por outro lado, o próprio Phelps apontou para a desaceleração, a seguir, do crescimento da China (o que tem sido indicado pelo próprio governo chinês desde o final do ano passado e início deste) e do impacto disso no resto do mundo. Como a economia norte-americana reagirá, com seus déficits crescentes (não custa mencioná-los novamente, já que eles são sistematicamente ignorados pelos comentaristas), quando a ‘poupança’ internacional (proveniente principalmente dos países asiáticos, como o próprio Phelps lembrou) diminuir e não se direcionar mais com a mesma robustez para o mercado interno norte-americano?

Turbulência limitada?

Então, por um lado, muitos analistas e jornalistas vaticinam que não há motivo para se preocupar com o estouro da bolha imobiliária porque a expansão do crédito imobiliário norte-americano não é capaz de provocar uma crise profunda: os créditos subprimes, afinal, são apenas 4% do total dos ativos do mercado financeiro mundial. Neste sentido, a redução das taxas de juros efetuada pelo FED no dia 17 p.p. teria sido suficiente para debelar a ameaça de crise poucos dias após seu início (foi o que escreveu, por exemplo, Sardenberg em artigo publicado no dia 20). Esses analistas têm razão – a bolha em si e seu estouro não podem mesmo causar a crise maior da economia mundial – e não têm razão – a bolha está diretamente associada (como conseqüência, não como causa) aos fatores que provocam a crise sistêmica norte-americana que, por sua vez, pode provocar a turbulência global; há um perigo real e imediato de crise. Um eventual desdobramento provavelmente será considerado por esses analistas como sendo algo separado, uma ‘outra’ crise, não aquela ‘debelada’ pela medida do FED no dia 17.

Por outro lado, o que outros analistas e jornalistas têm considerado é que os Estados Unidos não são mais tão importantes como eram antes no que se refere à economia, de modo que a crise sistêmica que se avizinha na economia norte-americana não será capaz de afetar a economia mundial: a idéia implícita é que o crescimento econômico nos últimos dez anos, sobretudo dos países asiáticos, é importante demais e mais do que suficiente para impedir que a economia mundial seja contaminada pela crise sistêmica norte-americana (alguns acham que sequer haja risco de crise sistêmica na economia norte-americana. É justamente a posição supramencionada de Phelps). Desta maneira, tudo o que poderia ocorrer seria um ajuste de mercado provocando uma turbulência limitada, sem alcançar a ‘economia real’. A evidência seria que a crise, nas suas duas primeiras semanas, está ocorrendo nitidamente no âmbito financeiro, sem provocar impacto na economia real (é o teor de diversas matérias e entrevistas publicadas na imprensa nos últimos dez dias).

A primeira parte, sobre o decréscimo da economia norte-americana nos últimos anos, é evidentemente verdadeira (tal como tratado acima). Entretanto – apesar desse decréscimo – a conclusão (de que a crise norte-americana não será capaz de afetar a economia global) talvez, por um lado, superestime a força da chamada ‘economia real’ e da política monetária dos países asiáticos influentes, subestimando, por outro lado, o impacto de uma crise sistêmica dos Estados Unidos no resto do mundo e, sobretudo, a força da ‘economia financeira’. Aqueles analistas e jornalistas talvez estejam se deixando impressionar demais com os crescimentos (inegáveis) de países asiáticos (principalmente, da China e da Índia) e, ainda, com o suposto peso da ‘realidade’ da ‘economia real’ e confiando demais na ‘economia monetária’ praticada pelos bancos centrais. Um dos paradoxos mais visíveis nessa história é que, na pequena turbulência ocorrida na primeira quinzena deste mês devido aos problemas na economia norte-americana, o mercado financeiro correu precisamente para os títulos do Tesouro norte-americano e para o dólar, valorizando a moeda norte-americana: isso prova, pelo menos, que o mercado financeiro (sempre mais pragmático e menos teórico do que os analistas) demonstrou considerar a importância da economia norte-americana, atribuindo segurança aos Treasures (os T-bonds) e ao dólar norte-americano. Nesses dias, o mercado financeiro sinalizou claramente considerar que, na hipótese de uma crise sistêmica na economia norte-americana, a segurança está nos Treasures e na moeda norte-americana, não nos ativos financeiros fora dos Estados Unidos. Além disso, é desnecessário lembrar que uma crise mundial séria atingiria inicialmente o âmbito financeiro, de modo que o comportamento do mercado, sem atingir a ‘economia real’, em apenas duas semanas não prova necessariamente que a crise seja tão restrita quanto aqueles analistas querem fazer crer. Ainda: na década de 90, a Rússia não tinha a importância econômica que os Estados Unidos ainda têm hoje – era até desnecessário dizer isso –, mas a crise sistêmica naquele país foi suficiente para causar a grande turbulência na economia mundial conhecida como a Crise da Rússia.

Considerações finais

Nas últimas duas semanas, vimos como a imprensa econômica tem enfatizado, sobretudo, dois aspectos. De um lado, reportagens mostram o que tem ocorrido (desde o ano passado, mas de maneira mais intensa ultimamente) com os tomadores de empréstimos que não conseguem pagar as prestações e, assim, ou têm simplesmente tido suas dívidas executadas e assim perdido tudo o que investiram, ou têm colocado à venda os imóveis (agora desvalorizados) tentando atenuar suas perdas; essas reportagens apontam a perspectiva de que muitos outros tomadores de empréstimos sigam esses caminhos. De outro lado, matérias ressaltam que o mercado financeiro desconhece quais instituições financeiras têm títulos subprime – afinal, as instituições que primeiramente fizeram os empréstimos renegociam os títulos, repassando-os para outras instituições. É esse desconhecimento que provoca a apreensão do mercado: investidores do mercado financeiro não sabem se as instituições com as quais têm ou pretendem ter negócios estão com sua saúde econômica abalada. A imprensa, portanto, tem privilegiado esses dois tópicos, não apresentando uma visão efetivamente global sobre o assunto: como a crise imobiliária está associada aos déficits interno e externo, à ameaça de recessão e de deflação e às medidas do Federal Reserve ao longo desses últimos anos. Assim se comportando, a imprensa não contribui em nada para esclarecer: a bolha imobiliária não pode causar uma crise sistêmica, mas os problemas nos créditos imobiliários são conseqüência de uma crise sistêmica que pode disparar uma turbulência financeira grave a qualquer momento (momento impossível de prever). Como escreveu Roberto Macedo em artigo publicado no dia 23, ‘essa crise financeira não tem um day after, ou um dia seguinte, mas muitos dias depois, ainda incontáveis e insondáveis’. Isso porque ‘essa crise financeira’ a que Macedo se refere é conseqüência da crise sistêmica da economia norte-americana como um todo – crise da economia produtiva, da economia monetária e da economia financeira.

Nos últimos dez anos, a economia produtiva (a chamada ‘economia real’) mundial cresceu cerca de 100% (mais de 200% na China, próximo a 200% na Índia, menos nos outros países). Por sua vez, a economia que não é chamada de real cresceu bem mais: por exemplo, as bolsas de valores cresceram mais de 600%. Essa economia não precisa ficar a reboque das mudanças na ‘economia real’; pelo contrário: ela tem forças para provocar mudanças na ‘economia real’. Um crescimento de 100% da economia produtiva em dez anos é uma marca excelente, mas essa marca excelente não deve ser superestimada (e a responsabilidade é, evidentemente, de quem a superestima, não da economia produtiva). A própria defasagem entre o crescimento da economia produtiva e o da economia ‘não-real’, com a vantagem desta última, deveria chamar a atenção. Tudo o que a economia especulativa cresce acima da economia produtiva obedece à soma zero (e aí ela pode justamente ser chamada de ‘não-real’): o que alguns ganham, o realizam à custa dos que perdem. Aqueles grandes investidores que entraram nas bolsas de valores há alguns anos viram seus investimentos multiplicarem de valor. Esse ‘capital de risco’ correu, efetivamente, pouquíssimo risco – para não dizer que não correu praticamente nenhum risco – nesse período. Esse ‘capital de risco’ (que assume mais ‘riscos’ quando a economia é francamente crescente) costuma, em momentos de crise (nos momentos que antecedem crise e mesmo nas ameaças de crise), mostrar rapidamente uma fortíssima aversão a riscos. Se esses investidores resolverem realizar os ganhos desses anos todos de seus investimentos, os primeiros a pagar serão os patinhos que entraram nas bolsas a médio prazo (que verão parte substancial dos lucros de seus investimentos nesse período diminuírem rápida e fortemente, de maneira que teria sido melhor para eles terem permanecido em investimentos ‘sem riscos’), os patos maiores que entraram num prazo menor (que verão os lucros obtidos desaparecerem totalmente e talvez até parte do investimento inicial sumir) e os gansos que tiverem entrado recentemente. As aves vão grasnar? Assim como agora tem ressaltado tanto as perdas dos que investiram em imóveis quanto os prejuízos dos credores, a imprensa tratará de ressaltar as perdas dos que entraram nas bolsas na alta e, a seguir, os efeitos negativos na ‘economia real’. Se isso ocorrer, os comentaristas especializados tratarão de explicar que isso ocorreu, apesar de eles terem dito que não ocorreria, porque houve mudanças nos fundamentos da economia – o que será um sofisma, sobretudo nesse momento.

******

Historiador e doutor em filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP