Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A desconversa cínica

José Dirceu, ex-presidente do PT: “Ao propor a discussão sobre a regulação da mídia, não nos propomos a controlar ninguém”. Rui Falcão, presidente do PT, citado por Dirceu: “Mas também não queremos que os grandes meios de comunicação controlem a opinião da população”.

O Observatório da Imprensa se ocupa desse assunto praticamente em cada edição. Na edição corrente, o texto “Programas policiais violam direitos humanos” relata proposta de um apresentador de programa de televisão no Ceará:

“Porque no nosso país (indignado) pena de morte pra bandido não pode. Pois então, por que não tirar a visão de quem pratica crimes hediondos? Não precisa prender, é só cegar. Duvido que ele mate mais alguém.”

O programa não pode nem deve ser censurado. Mas pode ser punido judicial ou administrativamente. Concessão tem regras. A emissora não se incomoda com esse tipo de incitação. Ao contrário, busca audiência explorando a violência, apoiada pelos anunciantes. É o que se vê neste vídeo grotesco, narrado à la Datena.

Notícia publicada em setembro de 2010 num site chamado TV Foco:

Barra Pesada deixa TV Jangadeiro/SBT na liderança isolada em Fortaleza”.

A emissora toca o barco, uma parte do público consome, mas há na sociedade setores que não se acomodam com a baixaria, com o coronelismo eletrônico, com a videoevangelização, com facciosismo na cobertura de política. O esforço pela regulamentação faz parte dessa insatisfação, mas ela teria uma tradução mais eficaz se se transformasse em negação de audiência, algo que está ao alcance de qualquer cidadão fazer e propor.

“Controle da opinião”

Examinemos agora o que foi dito pela dupla Dirceu-Falcão.

Se os grandes meios de comunicação pudessem controlar a opinião da população com propósitos, por exemplo, antipetistas, dificilmente teria havido a eleição de Lula, a reeleição de Lula e a eleição de Dilma, a eleição e a reeleição de vários governadores desde 1994, e, em 2010, de 13 senadores e dos 85 deputados que compõem a maior bancada na Câmara. A lista poderia continuar com deputados estaduais, prefeitos e vereadores.

Se os meios de comunicação controlam a opinião da população, fazem-no, portanto, em favor do projeto de poder do PT.

O que os grandes meios de comunicação querem é manter e melhorar seus negócios. É legítimo. Menos legítimo é, como parte de seu modelo de negócios, depender de fontes governamentais para obter uma parcela avassaladora das informações que publicam ou transmitem.

Aceitaram as políticas públicas do PT como haviam aceitado as de FHC. Ideologicamente, acompanham o poder econômico, que não tem nem teve conflitos sérios com os governos Lula e Dilma e todos os antecessores, menos João Goulart e Getúlio Vargas, que ajudou a derrubar.

E, para falar do maior mercado consumidor do país, a mídia se deu e se dá muito bem com os governos paulistas do PMDB (Montoro, Quércia, Fleury) e do PSDB (Covas, Alckmin, Serra), ou com os prefeitos paulistanos. Exceção foi Luiza Erundina.

Pedem o que não fizeram

O governo é um grande anunciante. Além disso, pode tomar ou deixar de tomar decisões que descontentem empresas de mídia, sendo verdadeira a recíproca: pode tomar decisões que as beneficiem.

A grande imprensa, independentemente de se amoldar ao compasso ideológico do poder econômico, trata bem a presidente Dilma, como tratou bem seus antecessores (ver “A índole é governista”). Falou em “faxina” nos ministérios quando e enquanto o Planalto achou conveniente. No noticiário quase nunca se mencionou que a hoje presidente, tendo sido chefe da Casa Civil durante cinco anos, teve acesso privilegiado às mais importantes informações que chegam ao Palácio (ou saem dele).

O que seria um tratamento melhor? Uma mídia chapa-branca?

Existe boa dose de cinismo quando um grupo que está há nove anos no poder e não fez força para regular a mídia brada pela regulação. Essa pregação parece ser uma espécie de arma sempre à mão que certos setores usam para ameaçar a imprensa. Volta e meia circula como espantalho, sempre acompanhada da solene declaração de que “não deve e nem pode, em momento algum, ser confundida com qualquer restrição à liberdade de imprensa” (Dirceu).

De pedra a vidraça

Um alvo da grande imprensa é o modo petista de exercer o poder. Nada como um dia atrás do outro: o PT usou e abusou das hoje desaparecidas “redações petistas” para bombardear seus adversários. Quem hoje fala em “denuncismo” esquece muita coisa. E não é a idade. É a conveniência.

Lula foi alvo depois do mensalão. Se não tivesse sido questionado a partir daquele episódio, a saúde político-institucional do país estaria hoje tão frágil que candidatos ao exercício de uma “dominação carismática” poderiam se assanhar. Lula foi alvo, também, toda vez que exacerbou sua condição de “metamorfose ambulante”.

Palocci, derrubado no episódio do caseiro Francenildo, pôde voltar à Câmara dos Deputados, coordenar a campanha de Dilma, tornar-se chefe da Casa Civil. Suas histórias de Ribeirão Preto foram postas na conta de “finanças para o partido”. Mesmo quando, para surpresa geral e consternação de muitos, descobriu-se que ele, em benefício próprio, amealhou R$ 20 milhões em dois anos de consultorias, a reação foi de complacência até um limite bastante elástico (ver “O protegido dos deuses”).

Outros alvos são integrantes de partidos da “base aliada” quando atingidos por denúncias com alguma consistência. Infelizmente, a baixa capacidade investigativa das redações faz com que hoje essas histórias dependam quase exclusivamente de “fogo amigo”, ou do Ministério Público e da Polícia Federal. Mas seria assustador um cenário em que nem houvesse canais públicos para “fogo amigo”.

O que cobrar das redações

Mais uma vez, esclareça-se:

1. A mídia concessionária de radiodifusão já é teoricamente objeto de uma regulação cujo cumprimento na prática não é fiscalizado, e que precisa ser atualizada;

2. Essa mídia agita o espantalho da censura porque está satisfeita com o atual déficit de regras;

3. Regulação não é censura, mas alguns setores não hesitariam em usar contra a liberdade de imprensa mecanismos de pressão à la Kirchner, à la Chávez ou à la Rafael Correa caso isso lhes fosse facultado.

Deve-se cobrar independência e competência jornalística das redações profissionais. Sabendo que os patrões e seus prepostos têm linhas editoriais, políticas e ideológicas definidas. Sem ilusões quanto a uma impossível isenção total do jornalista, mas vendo nas páginas dos jornais mais influentes um espelho que permite à nação conversar com si mesma.