Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A discussão em algum lugar do passado

O maior tesouro produzido pelo pré-sal, até agora, foi uma coleção de frases notáveis, algumas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, outras de autores desconhecidos, citados na imprensa como fontes não identificadas. ‘Não é o Brasil que é da Petrobras, mas a Petrobras que é do Brasil’, proclamou o presidente na quarta-feira (20/8), no Ceará, num de seus discursos diários. No mesmo pronunciamento, ele negou haver decidido a criação de uma estatal para administrar o petróleo recém-descoberto: ‘A única coisa que disse até agora é que o petróleo, enquanto estiver debaixo da terra, é da União’, informou o Estado de S.Paulo no dia seguinte. Na edição de domingo (24/8), as grandes palavras foram de uma fonte anônima: ‘O pré-sal pode não ser uma panacéia para os problemas nacionais, mas não se deve repetir o que aconteceu com o pau-brasil e o ouro de Minas Gerais, que foram levados embora do país’.

Que a Petrobras seja ‘do Brasil’ não é novidade, pelo menos num sentido: o Estado nacional detém, e por lei é obrigado a deter, a maioria das ações com direito a voto. Quanto a isso, o valor informativo da frase presidencial é nulo. Mas o recado era outro. Ele reafirmava, naquele momento, o direito de impor à empresa decisões estratégicas, como, por exemplo, o investimento em biocombustíveis. ‘A Petrobras’, havia dito o presidente, ‘é tão grande e tem tanto dinheiro que às vezes esnoba algumas coisas.’

Nesse ponto a história se complica. O Estado é acionista majoritário, mas a Petrobras pertence também a acionistas privados – incluídos milhares de trabalhadores brasileiros estimulados a investir seu fundo de garantia na empresa. Quando o presidente Lula se proclama disposto a mostrar quem manda na Petrobras, leva em conta essa gente? Desqualifica a diretoria da estatal? Empresários e analistas de fora do governo têm mencionado essas questões, mas a imprensa falhou, até agora, em cobrar uma resposta precisa das autoridades.

Que arbitragem?

Que o petróleo debaixo da terra pertença à União também não é novidade. Isso está na Constituição e na Lei do Petróleo – texto pouco lido, aparentemente, e citado apenas de forma indireta na maior parte da cobertura. Se o governo, como se afirma, pretende reformar essa lei, os encarregados de cobrir e de editar o assunto deveriam, supõe-se, conhecê-la muito bem.

Mas os direitos de exploração de reservas e de propriedade do petróleo extraído são negociáveis. Com o ficam esses direitos, no caso das concessões negociadas com os envolvidos no empreendimento do pré-sal, incluída a estatal brasileira? ‘Governo estuda desapropriar áreas da Petrobras no pré-sal’, noticiou o Globo no sábado (23/8). Segundo o jornal, a proposta foi discutida em reunião no Palácio do Planalto. Citado na reportagem, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, disse que a estatal e as multinacionais participantes das concessões seriam indenizadas ‘a preços justos’.

O Estadão tentou detalhar o assunto na edição de domingo (24). Segundo o ministro de Minas e Energia, não haverá rompimento de contratos. Mas houve conversa, admitiu, sobre desapropriação quando falou, na quinta-feira (21/8), de regras para ‘unitização’ de poços (a palavra, no vocabulário da marinha mercante, indica união de cargas).

Quando se pretende unitizar, tenta-se um acordo entre as concessionárias, disse Lobão. Quando não se consegue o acordo, alguns países apelam para a desapropriação. No Brasil, acrescentou, pode-se recorrer à Justiça ou pedir uma arbitragem pela Agência Nacional do Petróleo (ANP). Ah, bom. Mas o presidente dessa agência já se declarou, publicamente, subordinado ao presidente da República. Como poderia encarregar-se de uma arbitragem? Faltou cobrir esse detalhe.

Informações parciais

O Globo manteve a pauta na edição de domingo (24). O Estadão deu seqüência ao assunto, mas deu maior destaque a outro tema, o uso dos royalties. Segundo o jornal, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, propõe a adoção de regras para o uso desse dinheiro. Uma pesquisa da Universidade Cândido Mendes, mencionada na reportagem, aponta a contratação de funcionários e o repasse a organizações não-governamentais (ONGs) como as destinações mais freqüentes dessas verbas.

A Folha de S.Paulo atribuiu ao presidente Lula a disposição de capitalizar a Petrobras, mas não no montante proposto recentemente pela estatal (100 bilhões de reais). O presidente, portanto, estaria mais disposto que o ministro de Minas e Energia a buscar um entendimento com a empresa. Na Folha, Executivo e Petrobras mantêm relações melhores que nos demais jornais, onde as farpas do presidente contra a empresa têm sido noticiadas com maior destaque.

As tentativas de apresentá-la como guiada por interesses próprios e nem sempre coincidentes com os do Estado – leia-se ‘do governo’ – são parte da campanha a favor da criação de uma empresa para administrar o pré-sal, como tem mostrado boa parte do noticiário.

Tem sido indispensável, nas últimas semanas, ler pelo menos três ou quatro jornais para acompanhar as discussões em torno do pré-sal e os esforços do governo para redefinir as condições de exploração do petróleo nessa enorme área. A cobertura é fragmentada. Boa parte da informação provém de fontes não identificadas. As informações sobre os trabalhos da comissão interministerial envolvida no assunto têm sido sempre parciais, sem oferecer, pelo menos até o último fim de semana, um balanço completo do estágio alcançado nas discussões.

Falatório patriótico

O contraponto às poucas informações oficiais e (na maior parte) oficiosas depende dos comentários e avaliações de técnicos e empresários conhecedores do assunto. A maior parte da informação proveniente de fontes oficiais ou oficiosas trata de dois assuntos: a criação de uma estatal para administrar a exploração do pré-sal e a destinação do dinheiro obtido com essa atividade.

Numa entrevista à Folha de S. Paulo, o empresário e economista Francisco Gros, ex-presidente do Banco Central, do BNDES e da própria Petrobras, chamou a atenção para um detalhe aparentemente desprezado em Brasília: como extrair e aproveitar um petróleo situado a mais de 200 quilômetros da costa e a mais de 6 quilômetros abaixo do nível do mar. Será um empreendimento complicadíssimo, em termos técnicos, e serão necessários muitas dezenas – talvez centenas – de bilhões de reais para financiá-lo.

Em Brasília, o ministro Paulo Bernardo foi o único a mostrar, nos últimos dias, alguma sensibilidade ao assunto. ‘Vamos ter’, disse ele ao Valor, ‘de arrumar uma soma importante de dinheiro. Eu imagino uns R$ 150 bilhões a R$ 200 bilhões para investir em exploração nos próximos cinco a seis anos. Vamos ter de fazer captação de recursos no mercado externo e no interno. A não ser que façamos a exploração no pré-sal por concessão. Aí a Petrobras é que vai ter de levantar recursos junto às empresas privadas.’

No meio do falatório patriótico em torno do assunto, especialmente em Brasília, a declaração de Paulo Bernardo parece ter tido pouca repercussão. Tem tido mais audiência, aparentemente, quem compara o petróleo do pré-sal ao pau-brasil e ao ouro do Brasil colonial. Radicalismo é isso aí. Não basta esquecer a Constituição e a Lei do Petróleo e retomar palavras de ordem de meio século atrás. É hora de recomeçar a Inconfidência Mineira.

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Jornalista