Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A imprensa e o mercado de escravos

 

Na quarta-feira (23/5), o jornal O Estado de S. Paulo coloca à disposição do público o conteúdo digitalizado de seus 137 anos de história. Um dos destaques da reportagem que anuncia o lançamento são artigos sobre a abolição da escravatura, ocorrida em 13 de maio de 1888 e comentada na edição publicada dois dias depois.

Coincidentemente, a mesma edição de 23 de maio de 2012, que trata do resgate do acervo histórico do tradicional jornal paulista, traz também uma notícia atual, segundo a qual a Câmara dos Deputados acaba de aprovar uma proposta de Emenda Constitucional que determina a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde forem constatadas situações de trabalho escravo.

O fato obriga a pensar em como construímos nossa trajetória como país, como a imprensa registra cotidianamente essas mudanças e, sem grandes esforços, suscita a célebre frase de Karl Marx segundo a qual “a História se repete como farsa”.

A aprovação da lei que pune proprietários de terras que tratam os trabalhadores como escravos está em todas as edições dos jornais de quarta-feira (23), mas é preciso alguma reflexão para observar que a decisão imperial de 1888 não eliminou a servidão humana em território brasileiro.

Fiscalização insuficiente

Nesta segunda década do século 21, foi preciso reunir a Câmara dos Deputados para determinar que os exploradores de seus semelhantes terão suas terras expropriadas. E observe-se que 360 parlamentares votaram a favor da medida, mas ainda houve 29 deputados votando contra.

Não foi difícil para os jornalistas que cobrem o Parlamento identificar esses deputados que se opuseram à punição para os escravagistas da “pós-modernidade”. Os jornais explicam claramente que os votos contrários e a tentativa de esvaziar a sessão foram obra da chamada bancada ruralista, o mesmo grupo que se esforça para flexibilizar a legislação de proteção do patrimônio ambiental e que também acaba de aprovar, numa subcomissão da Câmara, uma proposta para liberar a compra de terras no Brasil por estrangeiros, sem limite de extensão, bem como legalizar as terras já adquiridas por investidores de outros países.

Esses representantes do atraso institucional impuseram todo tipo de empecilho, exigindo, por exemplo, que fosse feita uma emenda ao Código Penal para melhor definir o que seja trabalho escravo.

Interessante refletir em que, passados mais de 120 anos, o perfil dos escravagistas se reproduz em seus sucessores, como se o fantasma do atraso insistisse em assombrar o Brasil contemporâneo.

Atualmente, as violações à legislação trabalhista que configuram condições degradantes, jornada excessiva e outras circunstâncias semelhantes à escravidão estão descritas no artigo 149 do Código Penal e se repetem com muito mais frequência do que julga o cidadão leitor de jornais.

A fiscalização não alcança nem uma fração das propriedades rurais do país e, além disso, há outras formas de escravidão mais ou menos toleradas, como a situação de adolescentes e jovens retiradas de pequenas comunidades do interior e mantidas contra sua vontade em casas de prostituição.

A ilusão da modernidade

Também não custa lembrar que, em 28 de janeiro de 2004, três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho foram assassinados em uma emboscada no município de Unaí, Minas Gerais, quando investigavam a ocorrência de trabalho escravo em fazendas da região. Os supostos assassinos estão presos, mas os quatro acusados como mandantes, indiciados, seguem livres. Um deles é prefeito de Unaí, pelo PSDB.

A polícia comprovou a vinculação entre os assassinos e os mandantes, como pagamento por meio de depósito bancário, confissão dos jagunços e outras provas e evidências. Mas a Justiça tarda.

O acervo histórico do Estadão será sem dúvida um instrumento valioso para quem deseja estudar o processo histórico da construção da democracia brasileira. Talvez brotem desse conteúdo artigos e estudos interessantes que nos ajudem a entender como certas práticas contrárias à ideia de civilização se reproduzem pelos tempos afora.

A leitura diária dos jornais nem sempre provoca as reflexões adequadas sobre essa passagem do tempo e, eventualmente, até mesmo o discurso oficial nas páginas de opinião da imprensa induz a pensar que as forças do retrocesso são muito mais poderosas do que imaginamos.

Um salto entre 1888 e 2012 pode nos convencer de que a modernidade do Brasil é uma ilusão.