Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A imprensa e os mortos anônimos

Desde segunda-feira (5/11), os dois grandes jornais paulistas já não dão os nomes das pessoas mortas ou feridas em refregas entre policiais e criminosos, ou entre policiais criminosos e criminosos, ou entre policiais e policiais criminosos, ninguém pode ainda afirmar ao certo.

Configura-se um quadro de epidemia. Não como metáfora, mas literalmente: as primeiras poucas ocorrências são individualizadas, repórteres ouvem médicos e parentes, descrevem o contexto em que se deu o óbito. De certo ponto em diante isso se torna impossível, faltam tempo e espaço.

Enquanto foi percebido como varejo, o surto homicida atual na Grande São Paulo permitiu circunstanciar os casos, antes de tudo dando nomes aos mortos. No atacado, os indivíduos viraram números. No Rio de Janeiro, pouco menos de duas décadas atrás, a polícia regrediu do estágio da “autoria desconhecida” para o da “identidade desconhecida”. Ou seja, começaram a enterrar corpos anônimos – e a desistir de toda e qualquer investigação.

(Não se pode ignorar, ao mesmo tempo, que mortos da periferia paulistana não pertencem ao leitorado desses jornais. Se houvesse uma chacina de moradores dos Jardins, os jornais dariam nomes, fotos, resumos biográficos, chamada na primeira página, talvez manchete. Mas, criminosos ou policiais, os mortos no surto epidêmico em curso são da periferia.)

Trem sem freio

Os jornais são poder-dependentes, como já se disse dezenas de vezes neste Observatório da Imprensa. No dia a dia, os governos fazem as pautas. Isso cria no mínimo um vezo, frequentemente um vício, o de considerar importante toda emanação oficial, mesmo quando ela é uma forma de esconder o que se sabe. 

Foi o caso do anúncio da cooperação entre governo federal e SP, antecedido e sucedido por bate-bocas partidários. Os governos passam para jornalistas e pesquisadores apenas uma parte do seu conhecimento, menos vexaminosa. 

O governo paulista criou uma situação que o deixou a reboque do PCC e só consegue reagir com aumento de violência (inclusive em algumas cadeias, com o RDD, Regime Disciplinar Diferenciado, que uma alma nada caridosa, Fernandinho Beira-Mar, classificou como “fábrica de loucos ou de monstros”).

Caiu numa armadilha criada por suas políticas penal e prisional. Há anos o Executivo, o Judiciário e o Ministério Público de São Paulo enchem cadeias que estão fora de controle. Ou melhor, são controladas pelo PCC, a organização criminosa que venceu todos os embates no mundo do crime e se afirmou como hegemônica. O governo fornece ao PCC, diariamente, dezenas de pés de chinelo que são transformados em profissionais.

A organização usa mais do que violência, coerção, pressão e chantagem para se impor. Teria conseguido, dentro das prisões, uma disciplina tão estrita, assumida com tal empenho por seus integrantes, que funciona nas ruas, longe dos chefões (seriam 14, atualmente). Por isso pôde passar de um formato de comando verticalizado para um horizontalizado, que se amolda à territorialização. 

Tem coesão e organização superiores às das forças policiais paulistas e de outros estados, um enraizamento muito maior nos territórios que controla (capital e mais de 120 cidades do interior de São Paulo, partes de Rio de Janeiro, Bahia, Alagoas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais e Rondônia), embora não tenha, nem de longe, poder de fogo superior. Mas, agindo como guerrilha, torna-se temível.

Policiais criminosos

Por que, com um poder de fogo superior, a polícia paulista teve mais mortos em 2012 do que o PCC, ainda mais quando se incluem na categoria de bandidos “suspeitos” que são mortos por arrasto? 

Uma questão central é a da criminalidade policial. Pessoas sérias familiarizadas com o tema acreditam que ela esteja na origem da atual temporada de horror: grupos de policiais se teriam tornado comercializadores de drogas ilícitas (começam a ser chamados de milícias, o que é um duplo erro: no Rio de Janeiro, o nome já não tinha cabimento quando foi inventado por jornalistas; os grupos de São Paulo teriam começado disputando diretamente território com traficantes).

Trata-se de uma velha lição: não há limites confiáveis entre os diferentes tipos de ilegalidade. Se um policial bate num preso, pode roubá-lo também. Se executa um “suspeito”, pode assaltar um caixa eletrônico (há PMs acusados de praticar essa modalidade de crime). 

Uma situação dramática é vivida dentro das corporações policiais: os honestos são obrigados a conviver com os outros e fingir que não sabem de nada. A alternativa é pular fora da carreira. Existem também casos, não raros, de suicídio de policiais. É difícil enfrentar a criminalidade dentro de casa. Por definição, policiais detêm muitas informações sobre cidadãos comuns, e muitas mais ainda sobre colegas. 

Polícia Civil escanteada

Outros especialistas dão mais peso, como fator de desencadeamento da crise, à própria política de (in)segurança pública praticada pelos governos paulistas desde, para não ir mais longe, Paulo Maluf (1979-1982). Agora, a maior autoridade policial paulista, oficial da reserva da PM Antonio Ferreira Pinto, integrante do Ministério Público, ex-secretário da Administração Penitenciária, decidiu em 2009, ao assumir a Secretaria de Segurança, combater núcleos de corrupção na Polícia Civil. 

De fato, a repetição de episódios criminosos envolvendo policiais civis se tornara escandalosa. Vide o milhão e meio de dólares extorquido do traficante colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia, preso em 2007 (ele cumpre condenação nos Estados Unidos), para citar um entre numerosos casos expostos na imprensa, e tanta coisa mais que não chega ao conhecimento do público.

Escandalosa e perigosa. Um dos ingredientes da ofensiva do PCC que parou São Paulo em maio de 2006 foi o sequestro, pouco mais de um ano antes, de um enteado de Marcola, Marcos Willians Herbas Camacho, considerado o ocupante do topo da hierarquia da organização. Filho de Ana Maria Olivatto, ex-mulher de Marcola assassinada por rivais dele em 2002, Rodrigo Olivatto de Morais foi liberado pelo policial civil Augusto Peña em troca de R$ 300 mil. Marcola prometeu retaliação.

Uma reportagem detalhada sobre crimes de que era acusado Peña foi publicada pela Folha de S. Paulo em maio de 2008. Seu autor foi o repórter André Caramante. Aqui, é necessário abrir um parêntese. O que aconteceu meses atrás com Caramante configura um dos mais graves atentados recentes contra a democracia. E foi inspirado por um egresso da Polícia Militar. 

O hoje vereador coronel Telhada, então candidato pelo PSDB paulistano, saudou no Facebook nove homicídios ocorridos na cidade de Vargem Grande Paulista em operação da Rota, tropa da qual havia sido comandante até pouco tempo antes. Por ter noticiado a postagem de Telhada, Caramante passou a ser ameaçado e teve que se exilar fora do Brasil. Caramante é um perseguido profissional e político. 

Uma Rota “investigativa”

No domingo (4/11), reportagem de Bruno Paes Manso publicada no Estado de S. Paulo (“Por que SP chegou à situação atual?”) reafirma que o secretário Ferreira Pinto, ao deslocar das investigações a Polícia Civil, deu mais poderes à Polícia Militar, chegando a incumbir a Rota, tropa de choque da PM, de fazer investigações sobre o PCC. Mas quem passou anos colhendo informações sobre o PCC, para o bem e para o mal, foi a Polícia Civil.

A Constituição brasileira reconhece, entre diferentes polícias, a polícia judiciária (encarregada de investigações, a mando da Justiça), vulgo polícia civil, e a militar, encarregada da “polícia ostensiva” e da “preservação da ordem pública”. Não se entende que amparo legal teria essa determinação de Ferreira Pinto. Entende-se, porém, que foi uma “solução” exterminadora. 

Herança de um tempo (fim dos anos 1960 e décadas de 1970/80) em que esquadrões da morte e “justiceiros” eram considerados instrumentos necessários à “limpeza social”, como relata o mesmo Bruno Paes Manso em tese de doutorado defendida em agosto na USP (ver “Crescimento e queda dos homicídios em SP entre 1960 e 2010 – Uma análise dos mecanismos da escolha homicida e das carreiras no crime”). As polícias seguiam a trilha dos assassinatos de oponentes do regime militar, considerados pelos órgãos de repressão “inimigos internos”.

O resultado prático da incumbência dada à Rota por Ferreira Pinto foi uma perda ainda maior de controle da situação. E pode ter sido também a formação de quadrilhas de policiais militares, hipótese mencionada acima. Essa possibilidade se tornou mais verossímil quando dois PMs à paisana foram mortos num ponto de venda da favela de Heliópolis e se ficou sabendo que ninguém os havia mandado realizar algum tipo de missão naquele local (noticiário de 1/11). 

O primado das aparências

Voltemos às notícias sobre a cooperação governamental. Todos os passos das autoridades eleitas e de seus auxiliares são filtrados pelo crivo de pesquisas de opinião. Os dois “lados”, governo federal petista e governo estadual tucano, não se encontraram por estar convencidos de que a cooperação é um caminho indicado para melhorar a vida dos cidadãos, ou, pelo menos, aliviar-lhes o sofrimento. Dilma, Cardozo e Alckmin pensam “naquilo”: 2014. 

E foi consenso dos dois lados que o bate-boca, dias depois do segundo turno das eleições municipais (a onda de assassinatos começara em maio), pegava mal, poderia ser explorado por uns para criticar os outros. Então, certo, vamos encenar a cooperação. 

Criminalidade e política estão ligadas por diferentes canais: mercado financeiro, laços das polícias com atividades criminosas, avaliação pela opinião pública da competência das autoridades. Que ninguém se iluda. No Brasil, de modo geral, autoridades só encaram o doloroso dever de aumentar a eficácia policial quando o estado de coisas ameaça desempenhos eleitorais. E quase sempre insistem na força sem inteligência.

Armas e drogas permanecerão

Não existe a possibilidade de “acabar” com o tráfico de armas e drogas. Pode haver tentativas mais ou menos bem-sucedidas de manter controle sobre essas modalidades de delinquência. A solução menos ruim que se vislumbra no caso das drogas é a legalização, como ocorre com álcool e tabaco, entretanto de longe mais mortíferos do que as drogas ilegais (por isso há tantas dúvidas respeitáveis quanto aos resultados da legalização: ninguém pode prever com um mínimo de certeza o que adviria dela). 

Em todo caso, uma coisa é morrer devido ao uso ou abuso de uma droga e outra é levar um balaço em meio a conflitos entre mocinhos e bandidos. Nos EUA, com a legalização do uso “recreativo” da maconha em alguns estados, decidida agora em plebiscito, pode estar sendo dado um passo que mereça acompanhamento. 

Quanto às armas, as legislações diferem de país para país, como se sabe. Restrições poderiam resultar do controle da produção: a esmagadora maioria das armas é produzida legalmente, sob licença expressa de autoridades. Teria de haver um acordo geral para proibição de venda ao público de armas de fogo. No estágio atual de subdesenvolvimento mental da humanidade (como um todo, para efeitos práticos), isso é miragem. No Brasil, um referendo derrotou em 2005 a proposta.

Fronteira indomável

“Fechar” as fronteiras brasileiras, como sempre reivindicam governadores, secretários de (in)Segurança Pública, delegados-gerais, comandantes de Polícias Militares, não é uma proposta séria. Se os Estados Unidos, com um PIB seis vezes maior do que o brasileiro, não conseguem “fechar” sua fronteira com o México (3.141 km), por onde entram as maiores quantidades de drogas ilícitas do planeta, o que poderá fazer o Brasil, com 10 vizinhos e 16.885 km de fronteiras? 

O que as polícias conseguem é dar grandes “botes” sobre quadrilhas, descobrindo, a partir de quem as recebe, onde as armas foram compradas, e assim sucessivamente, a montante. E, na eventualidade de haver êxito, é preciso garantir que as armas não sejam revendidas a bandidos por policiais canalhas, o que é corriqueiro no Brasil.

Inteligência policial?

Repetiu-se, no contexto da prometida cooperação União-estado, o discurso da inteligência policial. Mas como inteligência, se o que se vê na prática é o uso de informações pelas “bandas podres”? No Rio de Janeiro, policiais investigaram lavagem de dinheiro com métodos sofisticados e usaram o resultado das investigações para achacar parentes de chefões presos. As represálias tiveram péssimas consequências. 

Inteligência policial acabou virando rótulo para um frasco com muitos componentes disparatados, que acabam se anulando. Nada é especificado, com o argumento de que se trata de operações sigilosas. No quadro atual, de falta de confiança nas polícias, quanto mais sigilo, maior a suspeita. 

Infelizmente, a inteligência policial se subordina a uma cadeia de comando cujo vértice é ocupado por presidente e governadores que põem em primeiríssimo lugar, como (quase) todos os ocupantes de cargos eletivos neste país, sua própria imagem.

Mortos não são números

De volta aos mortos sem nome. A imprensa não deveria aceitar manipulações estatísticas. É cretinismo numérico argumentar que a taxa de homicídios na cidade de São Paulo “deu um salto”, tanto quanto responder que ela permanece muito abaixo da média nacional. Não é de números que se trata, é do peso simbólico das mortes. 

Existem três vertentes: mortos sem rótulo, vítimas colaterais da guerra particular entre a Rota e o PCC, ou vice-versa. Em face delas, o que aflora, pela enésima vez, é a constatação de que a vida humana vale muito pouco no Brasil. A repetição desse massacre cotidiano amortece o sentimento de compaixão pelos que perdem seus entes queridos. De um ponto de vista pragmático (mas não cínico), logo, logo, quando a transição demográfica estiver mais avançada, o país lamentará amargamente ter perdido tantos braços jovens.

No segundo grupo podem ser colocados os integrantes do PCC. Essas mortes representam muito mais do que o número que as sintetiza. Elas engendram revanches (desde o início da guerra particular, chefes do PCC estipularam que cada vida dos seus custaria duas da PM). Para os moradores das áreas dominadas pela organização, é o terror. 

Não existe salvo-conduto contra bala perdida. Não há como conter o medo que toma conta de PMs quando estão ou pensam estar diante de integrantes do PCC. A recíproca é verdadeira. A maior parte dos bandidos capturados manifestam pânico quando dominados por PMs: é quase uma sentença de morte. O pânico e o desespero são péssimos conselheiros. Mais uma vez, todos perdem e sobra para os moradores.

Por fim, mas não em último lugar, as mortes de policiais militares. As consequências de 90 mortes de PMs em seis meses são incalculáveis. Uma pesada derrota para a corporação, para os cidadãos e para as instituições. Nesse ritmo, que se espera não perdure, a PM de São Paulo perderia em dois anos e meio o mesmo número de homens que o Exército brasileiro deixou no cemitério militar de Pistoia, na Itália, mortos em combate contra os nazistas.