Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A imprensa entre a norma e o fato

Foi publicado no Diário da Justiça (edição de 6/11/2009) o acórdão redigido pelo ministro Carlos Ayres Britto referente ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130 que considerou inconstitucional a Lei 5.250 (Lei de Imprensa). O acórdão reafirma, ainda com mais clareza, algumas interpretações que a maioria dos ministros do STF já havia expressado e vem merecendo, por óbvio, editoriais de rasgado elogio na grande mídia nativa.

Para o observador leigo, chama atenção, em particular, a distância abissal entre a norma legal tomada como referência e a realidade concreta à qual ela remete, totalmente desconsiderada na decisão.

Já tive a oportunidade de tratar do assunto neste Observatório (ver ‘Lei de imprensa revogada: Anotações sobre o julgamento do STF‘). No entanto, tendo em vista as imensas implicações e duradouras conseqüências da decisão, retorno ao tema.

Norma legal vs. realidade

O item n. 6 do Acórdão trata da ‘Relação de mútua causalidade entre liberdade de imprensa e democracia’ e diz o seguinte:

‘A plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloqüente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retro alimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados. O § 5º do art. 220 apresenta-se como norma constitucional de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa convivência dos contrários. A imprensa livre é, ela mesma, plural, devido a que são constitucionalmente proibidas a oligopolização e a monopolização do setor (§ 5º do art. 220 da CF). A proibição do monopólio e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado `poder social da imprensa´‘ (grifo nosso, ver aqui).

Além de conferir à imprensa uma liberdade maior do que as liberdades individuais de pensamento, de informação e de expressão (?!), o acórdão supõe como fato a não monopolização ou oligopolização que o caput do artigo 220 da Constituição manda observar quando determina a ausência de qualquer restrição à manifestação da expressão ‘sob qualquer forma, processo ou veículo’.

Será essa, de fato, a realidade da imprensa no Brasil?

Imprensa oligopolizada e coronelismo eletrônico

Já tive a oportunidade de lembrar no artigo anteriormente citado a ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal contra o Grupo RBS em Santa Catarina, onde, segundo nota do próprio MPF…

‘…a situação de oligopólio é clara, em que um único grupo econômico possui quase a total hegemonia das comunicações no estado. Por isso, a ação discute questões como a necessidade de pluralidade dos meios de comunicação social para garantir o direito de informação e expressão; e a manutenção da livre concorrência e da liberdade econômica, ameaçadas por práticas oligopolistas’ (ver Ação nº 2008.72.00.014043-5, de janeiro de 2009).

Gostaria de lembrar também que o ministro Ayres Britto é natural de Sergipe. Será que ele desconhece a situação histórica da imprensa em seu próprio estado?

Em texto recente sobre coronelismo eletrônico, o pesquisador Cristian Góes descreve assim a situação no menor estado do país:

‘Em Sergipe, praticamente todos os veículos de comunicação que absorvem quase a totalidade dos meios pertencem a dois grupos: Franco e Alves/Amorim, comandados por dois ex-governadores que se revezavam no comando do Executivo nos últimos 40 anos. Das quatro únicas emissoras de TV abertas (consumidas por 90% de toda população) duas são dos Franco (Globo e Record), uma é da igreja católica (Canção Nova) e uma do Governo do Estado. Os Franco ainda detêm o maior jornal diário, emissora de rádio e portal na internet. Os Alves (família) têm jornal diário e emissoras de rádio espalhadas pelo interior que chegam a cobrir quase 100% de todo Estado. Alves/Amorim e Franco detêm amplas terras, cana-de-açúcar, indústrias e construtoras. O Governo de Sergipe gasta, numa média histórica dos últimos dez anos, cerca de R$ 40 milhões/ano, com a mídia local. Diretamente João Alves Filho e Albano do Prado Franco governaram Sergipe por 16 anos e nesse período todo enviaram, em linha direta, os vultosos recursos públicos para as suas empresas de comunicação’ (ver íntegra aqui).

Será essa a ‘concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente democráticas’ referida pelo ministro no Acórdão do STF?

‘Estrutura policêntrica’ como condição para democracia

Em seu A Teoria da Democracia Revisitada (1994), o cientista político ítalo-americano Giovanni Sartori afirma que uma das duas condições que permitem uma opinião pública relativamente autônoma é ‘uma estrutura global de centros de influência e informação plurais e diversos’. E continua:

‘A essência do argumento é que uma opinião pública livre deriva de uma estruturação policêntrica dos meios de comunicação e de sua interação competitiva, e é sustentada por elas. Em síntese, a autonomia da opinião pública pressupõe condições semelhantes às condições de mercado. (…) Os benefícios da descentralização e competição dos meios de comunicação de massa são, nesse argumento, mecânicos em grande parte, e de dois tipos. Primeiro, a multiplicidade dos que querem persuadir reflete-se na pluralidade de públicos; o que produz, por sua vez, uma sociedade pluralista. Segundo, um sistema de informação semelhante ao sistema de mercado é um sistema autocontrolado, um sistema de controle recíproco, pois todo o canal de informação está exposto à vigilância dos outros’ (vol. 1, pp. 139-140).

Independente de se acreditar ou não na eficiência de um suposto ‘market place of ideas’ e nos seus benefícios para a democracia, uma das premissas para a formação de uma opinião pública independente, sem dúvida, é a existência de competição entre os meios de comunicação, ou, na linguagem de Sartori, de uma ‘estrutura policêntrica’.

É aí que a liberdade de imprensa encontraria sua justificativa, na medida mesma em que permitisse a circulação da diversidade e da pluralidade de idéias existentes na sociedade – vale dizer, garantisse a universalidade da liberdade de expressão individual.

Não seria exatamente este o princípio contido no § 5º do Artigo 220 da nossa Constituição e que está longe, muito longe, de ser realidade no nosso país historicamente marcado pela concentração, pela propriedade cruzada e pelo coronelismo eletrônico?

Como falar em liberdade de imprensa como garantidora da democracia sem que medidas concretas de regulação do mercado das empresas de mídia sejam adotadas no Brasil – a exemplo do que ocorreu recentemente com a aprovação da Lei nº 26.522 na Argentina?

Infelizmente, não é assim que entende a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)