Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa nos tempos de guerra

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Koichiro Matsuura, no cargo deste 1999, onde permanecerá até 2005, pois o mandato é de seis anos, em mensagem enviada por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, celebrado na segunda-feira (2/5), propôs formação específica a jornalistas que trabalham em países em guerra. Acrescentou que ‘as autoridades devem respeitar o direito de trabalhar em condições razoáveis de segurança’.

Economista e advogado, o diplomata japonês, que já foi embaixador na França e simultaneamente em Andorra e Djibouti (1994-1999) – exemplo da proclamada eficiência japonesa e otimização dos recursos humanos altamente qualificados –, está preocupado com os atentados à liberdade de imprensa em zonas de guerra, que já resultaram na morte de vários jornalistas.

É conhecido o ditado dando conta de que a primeira baixa nas guerras é a verdade. Como trabalhar com isenção na cobertura de uma guerra? O exército dos EUA está praticando torturas no Iraque, como demonstrou o farto material divulgado recentemente. Jornalistas eventualmente protegidos pelas forças americanas poderiam narrar a guerra como ela está sendo travada? E se protegidos pela resistência iraquiana, como proceder para contar como vão as coisas no outro lado?

Algo deve ser feito, e Koichiro Matsuura tomou duas providências que parecem muito pertinentes: preparar os jornalistas que atuam como correspondentes de guerra e conclamar as autoridades a respeitar o direito que esses profissionais têm de trabalhar em condições de segurança.

O verbo preparar não pode, no caso, ser tomado como sinônimo de treinar. Um técnico de futebol treina o time para enfrentar o adversário, sabendo de antemão as regras do jogo. É claro que se o juiz errar ou roubar, o trabalho dele toma o rumo do cemitério da Cacuia, no Rio, que serviu para a conhecida metáfora ‘ir para as cucuias’.

Em se tratando das guerras atuais, as surpresas recomendam bem mais do que treinamento. Os profissionais, a cada nova guerra, enfrentam situações desconcertantes. Em momentos assim, o que vale é o lastro cultural dos jornalistas, que precisam improvisar em freqüência alucinante. Preparar é bem mais do que treinar. O indivíduo treinado responde de acordo com o manual. O preparado inventa a sua reação.

Palavras, palavras, palavras

O Brasil poderia fornecer bibliografias para o curso preparatório a quem vai atuar nos conflitos. Poderíamos começar com uma releitura cuidadosa de A Retirada da Laguna, publicado originalmente em francês, da autoria do Visconde Taunnay, narrando o que foi aquele trágico e polêmico episódio da Guerra do Paraguai. Outro livro indispensável é Os Sertões, de Euclides da Cunha, à semelhança do anterior também publicado em várias línguas, que denunciou o massacre de Canudos por tropas federais.

Como o Brasil também está em guerra, tendo sido já aventada a hipótese de convocar o Exército para atuar no Rio, é bom lembrar o que fizeram os soldados quando enfrentaram os insurgentes. Ou melhor, o que os oficiais mandaram fazer. Canudos, a Revolução Federalista de 1893, as revoluções de 1930 e 1932, são temas e problemas, entre outros, ainda frescos para a reflexão.

De todo modo, a proposta é de concretização complicada. Podemos certamente diminuir os riscos, à luz de instruções adequadas. Evitá-los, não! Não apenas no ofício do jornalista, mas em todos os outros, trabalhar é perigoso! Há, porém, limites, com o fim de evitarmos a advertência de um dos primeiros correspondentes de guerra avant la lettre, Luís Vaz de Camões, em Os Lusíadas:

‘Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!’.

Todos os anos, quase que por obrigação do piloto automático dos diplomatas, são ditas as mesmas coisas sobre os mesmos temas. E nada se faz. Ano passado, no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, Koichiro Matsuura, concluiu assim a sua mensagem:

‘Eu apelo, portanto, à comunidade internacional, tomadores de decisão e cidadãos de todo o mundo para fazerem todo o possível para assegurar que jornalistas possam prosseguir com seu trabalho de maneira desimpedida e irrestrita, de forma que as pessoas ao redor do mundo possam se beneficiar da livre circulação de idéias. Por sua parte, a Unesco agirá, quando e onde for necessário, para promover a liberdade, o pluralismo e a independência da imprensa. Nós condenamos irrestritamente todas as formas de violência que visam ao silenciamento da verdade. No Dia Mundial da Liberdade de Imprensa de 2003, nossos braços estão dados em solidariedade com aqueles igualmente comprometidos com a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão’.

E o que foi feito? Palavras, palavras, palavras! Mas a ferramenta de trabalho dos diplomatas é a mesma que utilizam os jornalistas, a palavra, não mais do que a palavra.

No princípio era o Verbo, no meio e no fim também será. Mas o Verbo que traduz a palavra em ações, do contrário continuaremos atolados num oceano de palavras inconseqüentes.