Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A internet e os direitos autorais

Mesmo com o advento da digitalização mundial e dos downloads pela internet, a lei com relação aos direitos autorais no Brasil ainda não se adaptou à nova realidade. Buscando modificar os impedimentos dessa lei, o licenciamento de obras em Creative Commons possibilita a autorização prévia de artistas sobre os usos de suas obras. É sobre este mecanismo que conversamos com o professor Sérgio Branco. Em entrevista, por telefone, à IHU On-Line, Branco fala sobre o funcionamento, os usos, a função social e os impactos econômicos do Creative Commons. Segundo ele ‘quanto maior o aproveitamento de obras legais por terceiros, maior a possibilidade de criação de obras. Com esta criação, movimenta-se o mercado econômico também por criações novas, ainda que sejam por obras derivadas’.


Sérgio Branco é professor na Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV e doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Confira a entrevista.


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Como funciona o Creative Commons?


Sérgio Branco – Em primeiro lugar, é importante falar sobre nossa lei de direitos autorais, cuja proposta de mudanças está sendo discutida em São Paulo. Nossa lei atual é extremamente restritiva e proíbe uma série de coisas, inclusive proíbe a cópia integral de qualquer obra. Mesmo que eu, por exemplo, como autor de uma música, queira que as pessoas baixem minha música pela internet, a lei só permite que os usuários gravem pequenos trechos de cada obra. O Creative Commons serve como um mecanismo de ajuste do impedimento da lei. É um licenciamento pelo qual o autor autoriza previamente quais usos podem ser feitos de sua obra pela sociedade. Se eu sou músico e quero licenciar minha obra em Creative Commons, eu crio uma licença que irá permitir, no mínimo, que as pessoas possam copiar minha música na íntegra, ao contrário do que prevê nossa lei atual.


Como funciona hoje a lei dos direitos autorais no Brasil?


S.B. – A lei atual é de 1998, que aparece quando o mundo já está se digitalizando. A internet não tinha ainda a abrangência que tem hoje, mas já existia, já existiam CDs, o mundo já era digital. Porém, a lei de 1998, ao contrário da lei anterior, de 1973, não permite a cópia integral de obras, permite apenas a cópia de pequenos trechos. Faz poucas exceções para usos educacionais, não faz exceção nenhuma para uso por meio de organizações não governamentais, asilos, presídios e escolas públicas. É uma lei bastante restritiva. Comparada a outros países, e eu já analisei as leis de diversos países, é uma das mais restritivas do mundo. E como a lei impõe todas essas restrições, a sociedade se organizou de modo a buscar um mecanismo que estivesse em conformidade com a lei, mas permitisse um uso mais flexível das obras intelectuais. É neste contexto que surge a licença Creative Commons.


Como o Creative Commons muda essa lógica?


S.B. – Uma vez que o autor tem maior autonomia para dispor de sua obra, ele poderá, dentro do exercício livre de seu direito como autor, determinar que usos poderão ser feitos com a mesma. Ele que irá dizer se a sociedade pode usar a obra com ou sem fins lucrativos, se poderão somente copiá-la, se poderão modificá-la e criar outras derivadas. Eu posso compor um tipo de música e autorizar que as pessoas modifiquem a letra, a melodia, transformem minha música em outra. No mundo em que vivemos hoje, do remix, do reaproveitamento de obras, o Creative Commons se presta muito bem para esta finalidade, uma vez que, por meio da licença, permite que as pessoas legalmente possam usar de uma obra com os fins determinados por seu autor.


Como funciona a criação de uma licença Creative Commons? Como são as classificações dessas licenças?


S.B. – Acho que o Creative Commons é extremamente simples de se entender. O site mostra o que é preciso fazer para criar a licença, que é simplesmente responder a duas perguntas: se você permite que se faça uso econômico de sua obra e se permite que sejam criadas obras derivadas a partir dela. Uma vez que você responda a essas duas perguntas principais, o próprio site gera uma licença que é absurdamente autoexplicativa, ela indica para a sociedade o que os usuários podem fazer com sua obra independentemente de uma nova autorização do autor. Essa licença pode ser colocada em meios físicos. Eu mesmo lancei dois livros já licenciados em Creative Commons e a licença está impressa no próprio livro, de modo que para o usuário é bastante simples, só abre o livro e vê de que forma ele está licenciado e de que forma ele pode se valer daquela obra. Para o autor é simples também, é só criar a licença, que tanto pode estar em um meio físico como pode ser colocada nos sites, no licenciamento de música ou textos e fotos de um site. Surgem as licenças a partir da combinação dada às duas perguntas do site. Haverá uma série de licenças que surgem a partir da combinação das respostas, quer o autor tenha autorizado o uso comercial ou não, quer ele autorize obras derivadas ou não. É uma análise combinatória das respostas possíveis, por isso surgem licenças diferentes, mas elas nada mais são do que o respeito à manifestação de vontade do autor quando ele determina quais usos podem ser dados àquela obra licenciada em Creative Commons.


Qual setor hoje é o que mais usa o Creative Commons?


S.B. – Eu não saberia dizer exatamente qual setor, mas vejo muito uso em música e em sites. A internet tem essa natureza de dar muita visibilidade a obras, e, ao mesmo tempo, um controle menor sobre o que a outra pessoa vai ou não poder fazer. Quando se coloca a própria obra na internet, e o autor pode fazer isso, é muito difícil ter um controle. O Creative Commons vem apenas para legitimar aquilo que as pessoas geralmente fazem, que é copiar as obras que estão disponíveis na internet, quer a lei permita ou não. Por meio do Creative Commons, legaliza-se um uso que as pessoas fariam de qualquer jeito, por isso para a internet é tão importante. Se você licencia um site com Creative Commons, autorizado o uso comercial ou não, obras derivadas ou não, de qualquer forma, você permite que as pessoas possam, no mínimo, copiar o conteúdo do site. É importante dizer que até na licença que permite apenas copiar o uso, e não permite qualquer utilização na obra, é indispensável dizer a origem. Se você tem um site onde coloca seus textos e outra pessoa os copia, essa pessoa, por meio de uma licença Creative Commmons, está obrigada a indicar o site de onde tirou o texto ou seu autor. Para a internet, isso é extremamente útil, e tenho visto muitos sites usando licença Creative Commons.


E que setores ainda podem utilizá-lo?


S.B. – Qualquer obra protegível por direito autoral pode ser licenciada em Creative Commons. O mais difícil hoje em dia são filmes. As obras audiovisuais têm tradicionalmente usado menos as licenças Creative Commons, acho que por conta dos custos que são mais elevados e pela produção mais escassa. Não é muito comum haver essas licenças, sobretudo de longas metragens. Mas nada impede que filmes venham a ter licenças Creative Commons. A licença pode ser utilizada para absolutamente qualquer obra que possa ser protegida por direito autoral.


Podemos dizer que o Creative Commons, da forma como está se desenvolvendo e sendo utilizado, gera uma cultura da economia do conhecimento?


S.B. – Sem dúvida. Vivemos hoje em uma expansão gigantesca do conhecimento, e o Creative Commons estimula as pessoas a licenciarem suas obras e a legalizar aquilo que a sociedade vem fazendo à margem da lei: a cópia integral de obras sem autorização do autor. A licença permite a difusão do conhecimento de um modo legal, permite o uso de obras em instituições de ensino e ONGs, tem um papel social extremamente relevante a cumprir.


Qual é o impacto econômico que teremos com a flexibilização dos direitos autorais?


S.B. – O impacto econômico pode ser medido de diversas formas, mas, quanto maior o aproveitamento de obras legais por terceiros, se tem maior possibilidade de criação de obras. Com esta criação, movimenta-se o mercado econômico também por criações novas, ainda que sejam por obras derivadas. Obras em domínio público são extremamente relevantes do ponto de vista econômico porque, embora não se tenha a obrigação de pagar direitos autorais para utilizá-las, como peças de Shakespeare, ou músicas de compositores clássicos, como Chopin e Mozart, gera uma grande movimentação econômica com o reaproveitamento, com a modificação e a criação de novas obras a partir de uma dessas.


Como o senhor vê as iniciativas paralelas ao Creative Commons?


S.B. – A nossa lei de direitos autorais não dá mais conta dos desafios que a internet impõe, porque, hoje em dia, o mais comum é que muitas pessoas baixem obras, copiem e modifiquem, independentemente das proibições legais. Os artistas vêm buscando novos modelos de negócios. Temos um problema hoje que se divide em dois: um problema legal e de modelo de negócio. O problema legal, temos que resolvê-lo modificando a lei, e é nesse sentido que o Minc está promovendo seminários, consultas e debates públicos, para tentar ajustar e modificar a lei e torná-la mais em conformidade com as novas tecnologias e com o que a sociedade vem fazendo. Mas temos também um problema de modelo de negócios, que é tentar ajustar a forma de ganhar dinheiro com obras intelectuais ao tempo em que vivemos, e não se aproveitar de obras intelectuais para ganhar dinheiro com modelos de negócios dos anos 1970 ou 1980, que não existem mais porque o suporte, a tecnologia e o acesso são outros. Nos anos 1980, o direito autoral só interessava para quem tinha uma gravadora, uma editora, e hoje interessa a todo mundo, pois todos têm acesso a obras pela internet, todos modificam, criam, remixam e disponibilizam. Então, a forma de remuneração também tem que ser repensado, não basta repensar só a lei. Por isso, iniciativas como do Radiohead (que disponibilizou em seu site suas músicas para serem baixadas) são louváveis, pois é uma busca por um novo modelo de negócio, sabendo que o anterior já não funciona mais.


Uma coisa importante é que não existe uma incompatibilidade entre o licenciamento gratuito das obras, o que o Creative Commons promove, de modo geral, e o fato de que o autor não vai ganhar dinheiro. Esta busca por novos modelos de negócio gera também novas formas de remuneração. Há casos de autores, sobretudo de música, que licenciaram suas obras em Creative Commons e, ainda assim, ganham bastante dinheiro com outras formas, como shows, por exemplo. O BNegão, que integrava o grupo Planet Hemp, é um exemplo disso. Ele licenciou todas suas músicas em Creative Commons e tem vivido a partir de shows na Europa etc. Então não há uma incompatibilidade entre as obras estarem gratuitamente disponíveis na internet e o fato de o autor ganhar dinheiro com elas. Isto é possível. Só deve ser pensada uma forma de acontecer, e aí cada caso é diferente, mas há vários casos de sucesso.


 


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