Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A irresponsabilidade dos radiodifusores

Encerrada na semana passada, a segunda consulta pública sobre a implementação da audiodescrição – recurso fundamental para que pessoas cegas compreendam as cenas que estão sendo veiculadas na TV – não contou com a participação dos maiores interessados: as pessoas com deficiência visual. O site utilizado pelo Ministério das Comunicações para a realização da consulta não tinha recursos de acessibilidade.


O processo teve de ser reiniciado pelo órgão por ordem do Supremo Tribunal de Justiça, que acatou denúncia de entidades ligadas aos direitos das pessoas com deficiência justamente sobre o fato de a primeira consulta não ter seu conteúdo disponível em versão acessível a cegos. O prazo para novas contribuições encerrou-se no dia 28 de outubro. As contribuições recebidas estão disponíveis hoje em formato que pode ser lido pelos softwares que auxiliam pessoas cegas, mas o sistema que recebia as propostas não contava com este recurso.


A total falta de vontade do Ministério das Comunicações e das empresas de TV em implementar a audiodescrição na programação televisiva foi alvo de denúncias dos participantes do seminário ‘Comunicação e Exclusão – Pessoas com deficiência, invisibilidade e emergência’, realizado de 27 a 29 de outubro, em São Paulo, promovido pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) e o Instituto MID para a Participação Social das Pessoas com Deficiência. Pessoas com deficiência visual e militantes dizem que tanto o órgão regulador como os radiodifusores procrastinam o início da oferta do recurso.


Programas ao vivo


Em 2005, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (Abnt) publicou uma norma de acessibilidade na TV, que informava como fazer legenda para as pessoas surdas e a audiodescrição para as pessoas cegas. Paulo Romeu Filho, analista de sistemas da Prodam ETIC e pessoa com deficiência visual, participou da elaboração dessa norma [ABNT/NBR 15290] e, depois, foi convidado pelo Ministério das Comunicações para ajudar a escrever a Norma Complementar nº1/2006, que torna a audiodescrição obrigatória na TV. ‘Ao fim dos dois anos que deveriam ser o limite para a implementação, a Abert [Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV] e a Abra [Associação Brasileira de Radiodifusores] se manifestam ao ministério dizendo que não teriam tempo para implantar a tecnologia’, denunciou Romeu.


‘Durante 36 meses não se fez nada’, disse o militante Fábio Adiron sobre o descaso. ‘O Ministério deu mais 30 dias, como se fosse suficiente para resolver algo que não foi feito em 730. Esse prazo acabou sendo estendido por 90 dias.’


Antes do fim dos 90 dias, o Ministério das Comunicações colocou a audiodescrição novamente em consulta pública – o que já tinha sido feito antes de se criar a portaria, fato que Adiron classificou ironicamente como ‘curioso’. Já Romeu acredita que a nova consulta ‘foi totalmente inútil’.


A não implementação da audiodescrição iniciou uma verdadeira guerra contra a Abert e a Abra, segundo palavras de Romeu Filho. Ele denunciou que essas entidades se aproveitam do desconhecimento técnico do recurso pelo ministério para passar informações distorcidas, a fim de diminuir suas obrigações. ‘Por exemplo, dizem que a audiodescrição não se aplica a programas ao vivo, mas no mundo todo onde se usa o recurso ele também acontece em programas desse tipo. Assim, tentam passar a idéia de que programa ao vivo é programa improvisado, quando na verdade conta com um intenso planejamento’, explica.


Direitos negados


‘Políticas públicas, no caso das pessoas com deficiência, são procrastinações públicas’, sentenciou Adiron em fala na mesa redonda ‘Políticas públicas em Comunicação’. Para ele, que é pai de pessoa com deficiência visual, a falta de acessibilidade é uma violação do direito humano e constitucional de acesso à informação. ‘Ironicamente, quando as empresas são afetadas por alguma restrição quanto ao que elas querem transmitir, denunciam censura. Porém, a negação desses direitos ou é censura velada, ou é um reforço de um modelo ideológico que pretende que as pessoas com deficiência continuem alienadas no conhecimento e continuem sendo tuteladas’, afirmou.


Esse descaso contraria todo o discurso de responsabilidade social que as empresas de comunicação anunciam nas suas programações, disse Adiron. Como profissional de marketing, ainda abordou a questão pelo ponto de vista mercadológico: as empresas estão ignorando 24 milhões de pessoas com deficiência. Dessas, 16 milhões são pessoas cegas que poderiam, no mínimo, ser tratadas como consumidoras também.


Romeu Filho denunciou ainda a falsa de acessibilidade de algumas embalagens de produtos, cujo braile não é destacado o suficiente para permitir leitura. Isso o levou a questionar os verdadeiros interesses de empresas ‘que insinuam responsabilidade social’.