Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A lição de Sarney

Quando vejo José Sarney deixando o plenário ao lado de Fernando Collor e Renan Calheiros, tenho uma sensação desagradável. Vendo esse trio tão solidário numa hora tão difícil para as nossas instituições, fico inquieto, preocupado, pois faço parte daqueles que acreditaram que o Brasil tinha mudado. Olhando esses personagens, que parecem ter saído daqueles filmes antigos que passam nas modorrentas tardes da televisão, não consigo deixar de fazer a pergunta óbvia: até aonde eles querem chegar? Certamente não estão pensando no futuro das novas gerações, certamente devem estar fazendo grandes planos para o passado…

Não gosto de José Sarney; seu jeito de fazer política é o retrato de tudo o que o nosso país tem de mais anacrônico, mas preciso reconhecer que ele está dando uma lição para quem estiver interessado em entender o Brasil e seus políticos. Ele está mostrando como tirar sujeira debaixo de tapetes sem muito trabalho, como se ‘tira serviço’ sem esforço e nenhum tipo de pau-de-arara…

O presidente já tinha avisado: ‘José Sarney não pode ser tratado como uma pessoa comum.’ Ninguém levou a sério, foi um erro. Sarney tem história: esteve no PSD, UDN, UDN ‘Bossa Nova’ (de centro-esquerda), PDS, Arena e PMDB; elegeu-se governador do Maranhão com o apoio da Revolução de 64; cultivou como ninguém um senso de oportunismo admirável; na vitória e na derrota esteve sempre no lugar e na hora certa.

Uma fundação para celebrar seus feitos

Agora, mais uma vez, ele está no lugar que mais aprecia. Está nos dando a oportunidade de vermos certas figuras sem máscara. De vermos gente que parecia ter o rei na barriga, que achava que a farinha de trigo usada para fazer o pão que comiam era farinha de fazer hóstia… Agora eles estão com os pés no chão, desceram do disco voador… Nada paga o prazer de ouvir um deles dizer, com uma imensa cara de pau, que é réu confesso… Que está devolvendo o dinheiro usado por um protegido para fazer curso na Europa indevidamente. Mas devolver o dinheiro não basta. Ele precisa ser repreendido pela traquinagem que fez utilizando dinheiro de impostos. Ele precisa deixar a arrogância de lado e pedir desculpas ao povo brasileiro.

Grande Sarney! Agradeço também a ele a oportunidade de poder tomar conhecimento da existência de senadores com dedos sujos… Dedos que apontam erros dos outros e que recebem, em troca, revides com a mesma disposição de revelar sujeiras e falcatruas, mostrando que dedos limpos são coisas raras em certos ambientes… Na briga entre os integrantes do Senado, aprendi mais: alguns se insultam com os piores adjetivos e todos têm razão, ninguém está mentindo… Na briga entre eles foi revelado também que existem ‘cangaceiros de terceira categoria’, que existe senador que paga jatinho com dinheiro público e ainda minorias com complexo de maioria… Tomei conhecimento de gente que é acusada de usar dois tipos de discurso: os que realmente praticam e os que usam externamente para conquistar a torcida… Vi também desfilar um cortejo triste, composto de gente irada, com raiva do mundo e capaz de dizer para um colega que engula, digira e faça de seu pronunciamento o que quiser… Realmente, olhar a TV Senado não é coisa para criança – acho que deveriam elevar a faixa etária dos telespectadores…

Conheço o político Sarney desde a década de setenta no Maranhão. Quando digo para alguns que ele não nasceu Sarney, muitos ficam surpreendidos. Verdade! Ele foi se tornando Sarney aos poucos… Foi batizado como José de Ribamar Ferreira de Araújo Costa. Como acontecia na região, os filhos eram conhecidos como Zé do Fulano, Pedro do Sicrano e por aí afora. José Sarney, filho de Sarney de Araújo Costa, era conhecido como ‘Zé do Sarney’. O nome pegou, não teve jeito, ele mudou para José Sarney, nome que já usava para fins eleitorais. Com esse nome fez história e até criou uma fundação com o seu nome para celebrar seus feitos na presidência. Um deles é inesquecível: conseguiu entregar o país para o seu sucessor com uma inflação mensal de 84% ao mês… A fundação certamente fará força para aprisionar o povo num passado que teima em não passar…

Um novo Big Brother

Quando ele subiu ao púlpito do Senado para dizer que foi injustiçado, que não fez nada, fiquei preocupado. Sarney é um mestre nesse tipo de explicação, pois, como poucos, é um cavalheiro nos gestos, nas atitudes e na fala. Disse, com candura, que acha normal atender pedidos da netinha, mesmo quando ela pede emprego para o namorado… Que das acusações que lhe foram feitas nas diversas representações, nenhuma está relacionada com dinheiro ou prática de atos ilícitos. Que ninguém no Senado sabia que existiam atos secretos. Depois de ouvir tudo o que ele falou, confesso que senti vontade de me ajoelhar na sua frente e pedir perdão por ter imaginado que ele seria capaz de cometer tantas irregularidades…

Hoje estou convencido de que o presidente Lula estava correto. Quem não entendeu sua mensagem de que era impossível acusar um homem como Sarney perdeu um bom motivo para ficar calado… A estratégia foi perfeita. Sarney colocou seus pares no ringue. Ficou de fora, olhando a troca de golpes quando eles citavam pecados conhecidos e ameaçavam libertar os novos dos seus arsenais. Agora está difícil puni-lo por coisas que todos fazem. A lição de Sarney foi exemplar. Sua ‘tropa de choque’ não vai deixar ninguém esquecer de que só deve atirar a primeira pedra quem nunca cometeu pecado…

Mas uma indagação ficará no ar. Depois de ACM, Jader, Renan e agora Sarney, o que fazer com uma casa como o Senado? Continuar do jeito que está, fingir que não aconteceu nada, não votar mais em ninguém? É lógico que todas as opções são ruins. Mas a televisão está mostrando ao povo brasileiro o que ocorre lá dentro – é um novo Big Brother. O vencedor? Não é difícil prever… A democracia não pode prescindir do Senado, mas os eleitores estão cansados, o Senado precisa mostrar por que é necessário.

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Policial federal aposentado, formado em Jornalismo e Direito, Porto Alegre, RS