Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A medida da palavra certa

Os antigos sempre cultivaram tabus quanto a dar o nome próprio a coisas tidas como perigosas. ‘Fale do diabo, e ele aparecerá’, temia-se. Apesar de toda a racionalidade dos modernos, persiste o tabu: doenças, partes do corpo, a lista é grande. Até meados dos anos 1960, palavras como prostituta, maconha e outras eram tabus em certos órgãos da imprensa nacional. Em pleno regime militar, o famigerado DOPS carioca prendeu um jornalista do Pasquim (Tarso de Castro, se não me engano) por ter escrito a palavra ‘porrada’.

O recente pequeno debate na imprensa carioca sobre a palavra ‘terrorismo’ não se encaixa plenamente no conceito de tabu, mas também não fica de todo por fora. Um clichê teórico – terrorismo definido apenas pelo viés de uma concepção já estabelecida de política, de um enquadramento ideológico – termina refluindo para a prática terminológica da mídia.

Na realidade, pode ser bem amplo o espectro semântico-político do terrorismo. O presidente da República acertou ao nominar assim os atos de violência social no Rio de Janeiro, no que foi secundado por alguns acadêmicos e, neste Observatório, por Alberto Dines.

Quando deparamos com um acidente grave, uma catástrofe natural ou mesmo um homicídio, o sentimento e a palavra que nos acodem é algo como ‘horror’, ou seja, algo que se revela socialmente insustentável. Terror é outra coisa, é uma exacerbação do medo que, como bem o demonstra a teoria política de Hobbes, está na origem do laço social. A comunidade se constituiria como uma defesa grupal contra o medo, principalmente o medo originário, primal, da morte. O terrorismo mexe diretamente no vínculo comunitário, ao disseminar o temor da morte, contestando implicitamente o monopólio político que o Estado exerce sobre a violência e sobre o controle global do medo.

Dimensão política

É verdade que a nossa imprensa experimentou designar como terrorismo a exacerbação violenta dos ilegalismos em São Paulo e no Rio. Mas foram poucas as vezes, e sem grande convicção. No entanto, há muito tempo é evidente, para quem queira ver, que uma outra administração do laço social pelo medo se incrusta paulatinamente no espaço urbano, caracterizando formas alternativas ao poder de Estado, senão arremedos anacrônicos de formas pré-capitalistas (o ‘modo de produção asiático’ nos bandos de traficantes dos morros). Nada disso parecia configurar-se como ‘terror’, porque era um fenômeno confinado a espaços urbanos socialmente periféricos (favelas, subúrbios).

O problema agora é que o fenômeno se tornou presente e visível nos espaços supostamente protegidos pelo capital: bairros de classe média alta e intermediária, equipamentos públicos e os próprios dispositivos de segurança. As balas perdidas, por efeito de sua trajetória anárquica, rompem os limites territoriais dos guetos e disseminam a insegurança.

Há uma inconteste dimensão política (no sentido radical atribuído pelo politólogo alemão Carl Schmitt ao termo) nisso tudo: o poder sobre os territórios urbanos está sendo disputado com o Estado pelos ilegalismos urbanos. Não há como deixar de chamar pelo nome o que inequivocamente se constitui como terrorismo. É bem de um novo tipo de terrorismo social que se trata.

Administração do discurso

Haverá quem possa dizer ‘e daí?’ Ou então, ‘de que adianta dar nome aos bois, se não se consegue laçá-los?’ Em outros termos, entre a palavra certa e a solução do problema, pode haver um oceano intransponível quando se avalia a costumeira falta de vontade política, a tentativa de empurrar o problema com a barriga para evitar o desgaste virtual implicado nas grandes decisões.

As objeções procedem parcialmente. Mas é preciso levar também em conta o peso social do nome próprio. A palavra terrorismo remete à responsabilidade, não apenas do Estado, mas de toda a sociedade no combate ao que se afigura como uma ruptura daninha do laço comunitário. E a imprensa desempenha um papel realmente importante nessa administração correta do discurso.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro