Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mídia, os homens e os ratos



Quando li neste Observatório o artigo ‘A responsabilidade dos donos da grande mídia‘, assinado por Venício A. de Lima, enviei ao autor estes comentários, que ele sugeriu fossem também publicados. É o que faço em seguida.


A mídia é apenas parte do problema do alarmante recrudescimento da violência urbana protagonizada por jovens. O problema não é só brasileiro, é universal, e deve ser hoje a grande preocupação dos estudiosos.


Nos anos 1970, acompanhei na BBC, em Londres, um estudo sobre o comportamento de uma colônia de ratos às quais se proporcionou, em laboratório, condições ideais de vida: fartura de alimentação, espaço, higiene. A colônia se desenvolveu rapidamente e proliferou, os indivíduos engordaram e a expectativa média de vida aumentou.


Com mais vitalidade, os patriarcas das famílias não se ‘aposentavam’, não cediam suas funções aos mais jovens. Estes, sem ter responsabilidades na sociedade, passaram a ser indolentes, depredadores, e assumiam um comportamento de contestação violenta às ‘regras de conduta’, se podemos chamá-las assim. Destruíam alimentos, atacavam gratuitamente os demais, brigavam entre si. Ao mesmo tempo, reduziam sua atividade sexual, o que levou a uma queda vertical da taxa de natalidade. Embora mantidas as condições ideais de vida, a colônia definhou e acabou se extinguindo.


Os tempos são de fartura e alto consumo em certas sociedades. Talvez as classes média e média baixa das nossas cidades nunca antes tenham tido tanto poder de compra, nem nunca tenham sido tão seduzidas pelo consumo. Generaliza-se a posse e o desfrute de benesses que historicamente eram privilégio da minoria. As pessoas se tornam mais egoístas e menos generosas à medida que cresce seu poder de consumir. E, por outro lado, o gargalo para o emprego e acesso a posições importantes é cada vez mais estreito. Estarão dadas condições análogas à da experiência com os ratos?


Esperança única


Há dias assisti a um filme policial francês, bem convencional, cuja ação se dava em Paris e arrabaldes. Retive duas cenas de ambientação, sem importância alguma para o desenrolar da história.


1. Jovens jogam futebol num campo delimitado por alambrado; um carro-forte pára na rua limítrofe do campo, para o embarque de empregados; os jogadores interrompem o jogo, se aproximam aos insultos e bombardeiam o carro com pedras e imundices; apesar de uniformizados e fortemente armados, os empregados não revidam e fogem.


2. Seção de pessoal de uma multinacional: um jovem acaba de ser recrutado e um funcionário lhe estende um livreto dizendo: ‘Este é o seu manual, leia para aprender o seu serviço’. Resposta do jovem: ‘Tire esta merda da minha frente, não vou ler coisa alguma’. O funcionário se conforma e retira o manual.


O assunto do filme nada tinha a ver com a situação dos jovens e de sua insolência. As duas cenas simplesmente procuravam situar o espectador no ambiente, tal como alguém entrando num café ou madame passeando seu cachorrinho.


Vejo dois grupos de protagonistas principais na delinqüência juvenil: os garotões de classe média que desejam comprovar seus privilégios, praticando violência sobre ‘seres inferiores’: mendigos, prostitutas, índios, pobres. E os jovens despojados das periferias, decididos a obter pela força aqueles objetos do desejo que a vida real lhes nega, embora a publicidade diga que estão alcance de todos.


Penso que a mídia, deixando de glorificar a violência, poderia reduzir a ação desse segundo grupo de delinqüentes, aqueles para quem um instante de notoriedade vale o risco da execução sumária pela polícia. Já os bandos de meninos bem-nascidos podem ser assemelhados aos ratos jovens da experiência e, aqui, a única esperança é uma reação que parta de dentro da sociedade. Infelizmente, não dá para perceber o menor indício de reação.

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Publicitário, São Paulo, SP