Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A realidade de nossa academia.

Logo após a conclusão do ensino médio, o jovem Milton Santos, negro, baiano, tencionava prestar vestibular para Engenharia; não o fez, pois acreditava que teria dificuldades na Politécnica em face de sua condição de negro. Milton então começou nas ciências jurídicas, concluindo o curso para logo em seguida iniciar brilhante carreira em geografia, tornando-se o maior geógrafo brasileiro e um dos mais importantes do mundo.

O preconceito racial cruzou o caminho de Milton Santos (1926-2001) e de outros jovens em condições análogas no passado, interfere no presente e prejudicará outros tantos por longo tempo se nada fizermos para modificar esta grave situação social e racial.

Quando defendemos o sistema de cotas para negros e índios, temos em mente a ‘introdução de uma política compensatória que construirá no mundo acadêmico uma composição social, étnica e racial que venha de alguma forma refletir a diversidade da sociedade brasileira’ (Carvalho).

Focos de freyrianismo

Os números que nos são apresentados expressam de forma clara a disparidade no ensino superior. Segundo o IBGE, temos 46% de negros na população – destes, 40% são pardos e 6%, pretos. Tomando estes números como referência, passemos à realidade de nossa academia.

Segundo dados do provão do ano de 2000 amplamente divulgados por ocasião da III Reunião Mundial contra o Racismo, verifica-se que dos 191 mil estudantes avaliados em 2.888 faculdades, 80% são brancos, 13,5% são pardos e 2,2% são pretos. Aqui os números são concernentes às faculdades públicas e privadas. Isto quer dizer que caso sejam analisados apenas os cursos das faculdades públicas a diferença será ainda maior. Por fim, entre os cursos do ensino superior público, tomando apenas os mais concorridos, quais sejam, Medicina, Direito e Engenharia, a presença de negros é inferior a 5%, chegando a 0% em muitas turmas iniciantes.

Este processo de exclusão foi posto em prática durante todo o século passado, no qual predominou de forma intensa o pensamento de Gilberto Freyre, que se resumia na idéia de que nenhuma raça era inferior a outra. Entretanto, o cerne da questão do racismo (dificuldade de o negro ascender, ocupar postos) não foi objeto de discussão e análise. Ainda hoje temos focos de defesa do freyrianismo, com pensadores sociais que atuam de duas formas: pela exposição de argumentos, os quais nascem tão frágeis que acabam sucumbindo quando confrontados com o sucesso dos números dos cotistas que já fazem parte do mundo acadêmico, em todo o país, desde 2002, ou do silêncio em face do problema.

Exclusão perpetuada

Cabe agora uma análise dos argumentos contrários aos sistema de cotas raciais em universidades públicas. O primeiro deles diz respeito ao vestibular e à aclamada meritocracia. Entendam, o vestibular só prova um dado: os cursinhos pré-vestibulares mais caros, onde se concentram, em maioria quase absoluta, os estudantes da classe A, bem como os grandes colégios particulares idem, conseguem aprovar um número superior de vestibulandos por repassar mais informações, enquanto os cursinhos populares ou o ensino médio deficiente atuam de forma limitada implicando menor porcentagem de aprovações. A conseqüência direta é um maior número de brancos ingressando no ensino superior e em outros adentrando apenas calouros brancos.

Destaque-se o fato de muitos estudantes negros, além de estudar, precisarem trabalhar, comprometendo a sua tentativa de conquistar as vagas em razão de uma diferença ínfima resultante do erro de uma ou duas questões a mais em relação aos mais privilegiados. O nosso sistema de ingresso é responsável por tornar relevante esta ínfima diferença que acaba perpetuando a exclusão social e racial.

Evolução do pensamento

Adentrando a questão do ensino, surge a tese da melhora da qualidade da educação com investimentos desde o ensino básico até o ensino médio. Investir e qualificar o ensino de 1º e 2º graus não é suficiente. A elite branca busca o ensino superior público nos melhores cursos em face de sua qualidade. Esta mesma elite enxergando uma boa qualidade, ou melhor, uma excelente qualidade no ensino básico e no secundário lutará para que seus filhos ocupem estas vagas, surgindo assim uma disputa pela sua obtenção, o que já ocorre em muitas escolas públicas de qualidade. Corre-se o perigo de universalizar a exclusão racial. Entretanto, que fique bem claro, defendemos tanto o sistema de cotas como também investimentos na educação.

Alegam também os críticos do sistema que o certo seria a implantação de cotas sociais para estudantes oriundos de escola pública. Quando pregam este argumento, é possível se notar uma evolução substancial no pensamento, pois já não dão a mesma importância à meritocracia no vestibular. No entanto, não basta visar apenas a escola pública, uma vez que a disputa continuará presente, se levado em consideração que uma escola pública de periferia carece da mesma qualidade de uma escola pública localizada em região privilegiada, persistindo assim a brutal exclusão.

Emoção improvável

Não devemos deixar de mencionar a tese da guerra racial, guerra esta que poderá se instalar em nossas universidades com a presença de cotistas. De acordo com essa tese, conflitos raciais poderão eclodir e aqueles que defendem o sistema de cotas serão considerados os seus patrocinadores e incentivadores. Tais conflitos já existem e sempre existiram, conforme mencionado pelo professor da UnB e pesquisador do CNPq José Jorge de Carvalho em seu livro Inclusão étnica e racial no Brasil, para quem estes conflitos são localizados e setoriais e envolvem poucas pessoas pelo padrão: professor branco – aluno negro. O sistema de cotas propiciará a pluralidade de idéias e não será este sistema que implicará conflitos eternos. Se tais disputas persistirem, cairá a máscara de nossa elite branca docente, que sempre pregou a democracia racial ao melhor estilo freyrianista. A melhor forma de provarem que estão certos ao insistir em que não somos um país racista é procurar evitar tais embates.

Por fim, a tese mais absurda finca o pé na qualidade do ensino superior, que poderia ser influenciada de forma negativa com o ingresso de estudantes cotistas. Felizmente, esta tese caiu por terra em virtude do desempenho dos estudantes durante o curso. O rendimento dos cotistas é igual ou superior consoante análise feita pela Unicamp e pela UnB. Insistir em que o estudante cotista não acompanhará o ritmo dos demais não-cotistas é duvidar da capacidade do ser humano.

Para concluir, transcrevo as palavras da professora Solange Martins Couceiro de Lima, professora do Departamento de Comunicação e Arte da ECA-USP: ‘Desejo um dia começar as aulas da graduação na ECA numa classe onde haja alunos afrodescendentes, emoção que, este ano, mais uma vez não pude sentir.’

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Servidor público federal e estudante de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo