Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A reflexão que vale a pena ser feita

Com o fim do processo eleitoral e seu natural clima de paixão e irracionalidade, e a propósito das palavras de ordem do movimento negro nesta Semana da Consciência Negra, creio devamos nos debruçar reiteradas vezes em reflexões a respeito dos projetos de lei do Estatuto da Igualdade Racial e das cotas raciais, a fim de transmitir-se ao Parlamento renovado a melhor proposta para que se efetive no Brasil a necessária Lei de Promoção da Igualdade (que dispensa adjetivação racial) e seja acolhida na ordem jurídica a Doutrina de Ações Afirmativas, que não se confunde com cotas raciais.


O desafio é como fazer essa reflexão, pois o simples tema já desperta paixão e pouca racionalidade. Assim, pondero que Sócrates usava para filosofar duas características: reconhecer a própria ignorância como ponto de partida e abertura para o ato de conhecer e fazer perguntas que levem o interlocutor a examinar com maior cuidado e rigor as idéias próprias e dos outros sobre o tema em questão. Bem, é certo que os cidadãos atenienses o levaram ao tribunal, acusando-o de corrupção dos valores vigentes (digamos: desagradava aos sábios e às autoridades estabelecidas). Julgado e condenado à morte, foi obrigado a beber cicuta. Ofereceram-lhe a possibilidade de fuga. Preferiu cumprir as leis da cidade que amava, convicto de que defendia o conhecimento, as bases da democracia e da liberdade, proferindo a célebre frase: ‘A vida sem a reflexão não vale a pena ser vivida’.


Outro filósofo que anima o debate é o alemão Jürgen Habermas, ainda vivo, cuja teoria discursiva, aplicada também à filosofia jurídica, pode ser considerada em prol da integração social e, como conseqüência, da democracia e da cidadania. Teoria que possibilitaria a resolução dos conflitos vigentes na sociedade, não com uma simples solução, mas a melhor solução, resultado do consentimento de todos os concernidos (Um novo contrato social). Sua maior relevância está, indubitavelmente, em pretender o fim da arbitrariedade e da coerção nas questões que circundam a comunidade, propondo uma participação mais ativa e igualitária de todos os cidadão nos litígios que os envolvem e, concomitantemente, a tão almejada justiça. Essa forma defendida por Habermas é o agir comunicativo que se ramifica no discurso e que será explanado nessas reflexões.


Com tais pressupostos, reiterando que nada sei de definitivo, espero ouvir os argumentos contrários. Neste sentido e com a mesma convicção da relevância do tema, vale a pena o debate, pois, a despeito da condição de advogado negro e militante do movimento contra o racismo, subscrevi, ao lado de 113 intelectuais, sindicalistas e militantes brasileiros, um manifesto contra esses projetos de leis referidos, exclusivamente, pelo conteúdo racial em que foram elaborados e pela concepção não-impositiva conferida ao Estatuto, que tem redação apenas declaratória e autorizadora, um verdadeiro engodo pela ineficácia que, se aceita, demandará mais 30 anos para ser refeito – o que não podemos aceitar, conforme artigo que publicamos em nossa Afropress. A propósito, muitos debatedores não conhecem o texto do projeto.


Promoção da igualdade


Na época, temia que esses projetos, se aprovados sem amadurecimento, sem reflexão e sem as condições necessárias, seriam um cavalo de tróia. O tempo de tramitação (10 anos) não significa que foram debatidos com o conjunto da sociedade brasileira.


Dissemos então que o natural oportunismo eleitoral do Executivo e de um parlamento desmoralizado e especialmente a falta de convicção na legitimidade da Doutrina de Ações Afirmativas caminhavam para aceitar uma legislação defeituosa e ineficaz. Com esse posicionamento público, impediu-se que se aprovassem na fase pré-eleitoral aqueles projetos monstrengos que acatariam no seio da ordem jurídica o ideal dos racistas, ou seja, a institucionalização de raças distintas como status jurídico de cidadania.


Assim, estendo e convido a todos uma oportunidade para a interlocução, pois sou incondicional e antigo defensor de Políticas de Ação Afirmativas e radicalmente contra a institucionalização de raças com status legal. Asseguro não ser contraditório, pois, tal como a melhor doutrina, nacional e estrangeira, a legitimidade de AA não exige o pressuposto de cotas, pois AA é gênero de políticas públicas e privadas, e cotas, uma das espécies de AA. A doutrina de políticas de AA é indutora de promoção da igualdade, neutralização e remoção de preconceitos e discriminações, cuja implementação em níveis infralegais faculta diversas espécies de medidas práticas, especialmente o auto-estabelecimento de metas e também as cotas em situação muito especial, se assim o agente social entender e deliberar, sem a coação da obrigação compulsória pela lei.


Conceito refutado


Assim tem sido, faz anos, algumas universidades estão implantando políticas voluntárias de inclusão, a partir da denúncia dos militantes e intelectuais do MN e da constatação que apenas a medição meritocrática do vestibular, tem sido falha e injusta (exige conhecimento de quem não teve acesso a certas matérias e certos saberes como línguas, computação etc), além da viciosa prática do decoreba e fórmulas dos cursinhos preparatórios cujo candidato um ano depois não tem 50% do aproveitamento medido.


A oposição a cotas raciais por legislação federal é dogmática por não ser a melhor solução para o conjunto da sociedade, conforme preleciona J. Habermas. Além dos óbices constitucionais (art.5º, cabeça, e art. 19, III), essa oposição tem por maior fundamento a nossa responsabilidade ética com o futuro, pois, na condição de combatentes contra o racismo devemos ter por nosso interesse maior a incondicional destruição da idéia de raças, e não sua consolidação institucional. Conforme a Carta Magna, o Estado somente pode legislar tendo por objeto a pessoa humana e suas nuances características e diferenças inatas, excluso raças, que não podem ser acatadas como diferença humana.


Por seu lado, a CF/88 não confere nem admite raças como possibilidade de direito (art.19), e quando se refere ao racismo (arts. 3°, 4º e 5º, XLII) o faz para repudiar o seu conceito e refutar a crença em raças distintas. Portanto atuamos contra a institucionalização de leis de cotas raciais, o que não implica, automaticamente, repulsa à Doutrina de Ações Afirmativas.


Espinhoso dilema


Em segundo, AA não é sinônimo de cotas, confusão feita por leigos ou por má-fé, conforme a doutrina de nosso jurista mor, ministro Joaquim Barbosa:




‘Porém, falta ao Direito brasileiro um maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na implementação de ações afirmativas. Entre nós, fala-se quase exclusivamente do sistema de cotas, mas esse é um sistema que, a não ser que venha amarrado a um outro critério inquestionavelmente objetivo (por ex.:egressos das escolas públicas), deve ser objeto de uma utilização marcadamente marginal.’ (‘O debate constitucional sobre Ações Afirmativas‘)


Desde que bem legislada, pela forma e o conteúdo racialmente neutro, a doutrina de ações afirmativas é indispensável política de promoção da igualdade, pois J.J. Rousseau já diagnosticava em O contrato social: se a igualdade tende a ser violada, a lei deve assegurá-la e promovê-la revigorando para a democracia ocidental a antiga reflexão aristotélica.


Por seu lado, a legitimidade doutrinária de AA foi acolhida pela literatura de direito com o filósofo liberal norte-americano John Rawls (Uma teoria da justiça, 1971), herdeiro da tradição liberal, passando por Rousseau, Kant e Stuart Mills. Rawls debruçou-se sobre um dos mais espinhosos dilemas da sociedade democrática: como conciliarem-se direitos iguais numa sociedade desigual, como harmonizar as ambições materiais dos mais talentosos e adestrados com os anseios dos menos favorecidos em melhorar sua vida e sua posição na sociedade? Tratou-se de um alentado esforço intelectual para conciliar a meritocracia com a idéia da igualdade.


Deliberações legítimas


A resposta que Rawls encontrou para resolver essas antinomias e posições conflitantes fez história. Nem a social-democracia européia, velha de mais de século e meio, adotando sempre uma política social pragmática, havia encontrado uma solução teórico-jurídica para tal desafio. O filósofo Habermas considerou-a um marco na história do pensamento, um turning point na teoria social moderna, abrindo caminho para a aceitação dos direitos das minorias e para a política da Affirmative Action, a ação positiva. Políticas de compensação social adotada nos Estados Unidos desde então, que visam ampliar e facilitar as possibilidades de ascensão aos empregos públicos e aos assentos universitários por parte de mulheres e minorias étnicas, que deles tinham até então rejeitadas ou excluídas. Com AA, os agentes sociais passam a ter metas e se comprometem – voluntariamente – com a diversidade em lugar de cotas compulsórias, aliás, proibidas pela Suprema Corte dos EUA.


Destarte, o que o Movimento Negro não percebeu ainda, é que AA, para ser legítima e eficaz, precisa ser neutra e precisa ser a melhor solução e precisa, ainda, ser consenso. Uma vez acolhida no ordenamento jurídico, a sua neutralidade beneficia a todos os setores historicamente discriminados e passa a fazer a inclusão, e assim, pela pedagogia da diversidade, é que vai removendo os preconceitos e diluindo a cultura do racismo ou do machismo – por exemplo, nos EUA as mulheres foram as maiores beneficiárias de AA. Entretanto, nesse conceito de promoção da igualdade de Rawls, AA precisa e deve ser absolutamente neutra, e a especificidade apenas se manifesta na implementação das oportunidades, em que raça, origem, cor, sexo, idade, enfim, qualquer característica que sirva para identificação da clientela social e historicamente precarizada, limite-se a uma medição, a uma simples quantificação, e não seja elevada a status jurídico. Um exemplo disso é o esforço que empresas e universidades de EUA ou Canadá fazem, voluntariamente, na busca de talentos entre as chamadas minorias, ou seja, AA induz os agentes sociais ao autopoliciamento e a cuidarem para que a diversidade se efetive.


Destarte, é nessa categoria da indução à autogestão da diversidade que devem ser recebidas e saudadas as iniciativas das diversas universidades e empresas que estão criando seus programas de AA, como Unicamp, UnB, USP, UFPr e tantas outras, alterando e revendo seus critérios de mérito e seus processos seletivos visando fazer a inclusão. São deliberações legítimas interna corporis, são AA e, portanto, sem a imposição compulsória das cotas estatais e sem ferir a autonomia universitária, outra garantia da CF/88.


Estatização de raças


Quanto à metodologia, creio, o tempo e a experiência vão nos indicar a mais adequada, menos vulneráveis e de menores efeitos colaterais como é o estigma do beneficiário. O fato é que a universalidade da cidadania (dos negros, dos índios, dos analfabetos, das mulheres) ainda é uma novidade pós-guerra, e ainda mais recente entre nós, e somente com políticas públicas (AA) é possível acelerar a sua garantia de forma mais rápida, que as políticas universais realizariam em séculos. Assim, quem sofre a discriminação ou é filho do discriminado de ontem não pode nem quer esperar 5/6 gerações.


O que precisamos concluir com a inalienável responsabilidade ética com as futuras gerações, tendo em vista a melhor doutrina e os exemplos do direito comparado, é que AA não exige nem tem por pressuposto a idéia de cotas raciais compulsórias. Pelo contrário, a compulsoriedade de cotas se revelou o pior instrumento para se fazer AA, inclusive estigmatizando os beneficiários ou conduzindo-os a serviçais da opressão, como estão sendo os negros americanos Condoleezza Rice e general Colin Powell, exatamente por trazer em seu bojo o conceito nuclear do ideal racista de raças distintas, fazendo o beneficiário devedor de eterna e leal gratidão, igual fez com o alforriado que, retirado da senzala, transfigura-se em cidadão neutro, quando não em delator e opressor.


Por último, uma relevante questão de justiça social ainda sob o aspecto de políticas sociais é a constatação que as cotas raciais, se adotadas nas formas propostas, tendem a ser socialmente injustas e estéreis, com efeitos perversos pois, sem exigir novos investimentos, redistribuem a escassez sob o pálio da estatização de raças, pois não visa o aumento de vagas: retira oportunidades de brancos mais pobres (que tenham as piores notas) para entregá-las a negros mais privilegiados (que tenham as melhores notas), pessoas que na vida real convivem e compartilham a mesma escola, o mesmo espaço e ambiente social, tornando assim patente o surgimento de conflitos e rivalidades raciais não desejadas. Assim vistas, sob o ponto de vista social, nada perderão os brancos mais ricos (melhores notas) e nada ganharão os negros mais pobres (piores notas).

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Advogado, São Paulo