Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A resistência não tem preço

Não posso deixar de me solidarizar com Ziraldo e Jaguar, valorosos companheiros da resistência cultural no Pasquim ao obscurantismo ditatorial, diante do linchamento moral a que vêm sendo submetidos por alguns leitores. Acionado pelos mesmos princípios éticos e democráticos que me fizeram repudiar o golpe militar desde que surpreendido por ele, com menos de dois anos de profissão, no Correio da Manhã.

Por expressar esta rejeição, sempre e só no que escrevi, tornei-me, aos 26 anos, o caçula dos punidos com a suspensão dos direitos políticos por 10 anos; respondi a IPM; fui processado pelo ministro Suplici de Lacerda; tive que fugir pela janela – com Edmundo Muniz e o exímio editorialista Franklin de Oliveira – na noite em que forças policiais-militares invadiram o jornal, enquanto o Alberto Cury lia, em cadeia nacional, o texto do AI-5; acabei preso na redação, em 1970, demitido, após mais de três meses de prisão no inferno do Doi-Codi da Barão de Mesquita, e, ante a impossibilidade de sobreviver aqui, exilado, por quase 10 anos, na Alemanha.

Tentações ditatoriais

Como contabilizar perdas e ganhos (que os houve, embora não bafejados pela ditadura, na qual alguns vêem, equivocadamente, a grande musa dos cartunistas)? Incluir na conta os infartos, o romance inspirado na tortura, o conhecimento de outros povos e idiomas? Recebo, mensalmente, R$ 1.549,57 de aposentadoria de anistiado, ora rebatizada de ‘bolsa-ditadura’ – certamente, por quem não vivenciou os anos de chumbo ou optou por vivê-los por caminhos menos perigosos do que os da resistência.

Agora, o massacre do Jaguar e do Ziraldo levanta a questão: sou um ‘bolsista da ditadura’? Sei que agi movido pela minha consciência, sem visar a ganhos financeiros, que não foi ‘investimento’, mas, também, que, em todos os países regidos pelo direito, o Estado deve reparações pelos danos que ocasiona. A esses malefícios, que podem ser erros médicos ou balas perdidas em tempos democráticos, se agregam, nas ditaduras, desde prejuízos profissionais e materiais causados pela censura e pela repressão cultural a mortes e seqüelas físicas e mentais resultantes de tortura. 

Calcular o custo de uma carreira interrompida (a não ser nos casos de militares, diplomatas e outros funcionários públicos) é quase tão difícil quanto avaliar o preço de uma vida. Mais uma razão para que o nosso Estado jamais volte a ceder a tentações ditatoriais. Gera custos de reparação. Que os leitores zelosos com o erário público e com a destinação dos seus impostos também pensem nisso.

******

Jornalista e escritor