Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

A sociedade sem direito à informação

A criação do escritório brasileiro da organização não-governamental de direitos humanos Article 19, ocorrida em 30 de março, em São Paulo, produz oportunidade interessante para uma reflexão da nossa imprensa e da sociedade sobre a montanha dos documentos e estatísticas oficiais que ficam longe do alcance da opinião pública e nos quais nem mesmo jornalistas têm facilidade para colocar os olhos. Os registros sobre a guerrilha do Araguaia e outros episódios do regime militar são apenas uma parte dessa história.

A Article 19, criada em Londres em 1987 e com atuação em mais de 30 países, dedica-se a promover e proteger a liberdade de expressão e a liberdade dos meios de comunicação, com ênfase especial na luta pelo acesso à informação oficial e privada de interesse público. O nome da ONG é uma referência ao Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU:

‘Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito inclui a liberdade de ter opiniões sem sofrer interferência e de procurar receber e divulgar informações e idéias por qualquer meio de comunicação, sem limite de fronteiras’.

Casos de desinteligência

O encontro que celebrou o início de sua atuação no Brasil, marcado pela divulgação de estudos sobre o estado da informação pública, revela que nossa jovem democracia tem crescido com sérias deficiências no que se refere a esse direito fundamental. Desde documentos importantes sobre fatos essenciais para o conhecimento da nossa história recente, até detalhes corriqueiros de riscos ambientais em projetos de obras de infra-estrutura, omite-se de tudo sob a proteção da ignorância a respeito das leis.

O sistema penitenciário e o setor de segurança pública são verdadeiras caixas-pretas em praticamente todos os estados brasileiros. Quase tudo o que se publica sobre esses temas precisa ser revisado, o que pode estar produzindo um amontoado de nulidades estatísticas e, a partir daí, uma corrente de equívocos que certamente irão desaguar em políticas públicas inadequadas.

Até mesmo estudiosos vinculados a centros de excelência em pesquisa, como o Instituto de Estudos Avançados da USP, têm dificuldades para obter informação de qualidade. No caso dos estudos sobre a violência, por exemplo, utiliza-se com freqüência exagerada a técnica de projeções, dada a inexistência ou impossibilidade de se levantar dados em comunidades onde os órgãos públicos estão ausentes – ou onde simplesmente os funcionários responsáveis pela coleta de dados não dão a menor importância à acuidade dos registros.

Quanto por cento dos estupros ou dos furtos acabam alimentando as estatísticas oficiais? No Rio de Janeiro, os policiais militares responsáveis por cabines de atendimento a turistas desestimulam a prestação de queixas, quando não há morte ou danos físicos às vítimas, porque não querem que seus postos fiquem visados pelos superiores hierárquicos em função do número elevado de ocorrências. A rigor, ninguém sabe quantas pessoas são furtadas ou assaltadas no Rio, ou nos bairros menos assistidos de São Paulo.

Da mesma forma, muitos casos de desinteligência, geralmente atendidos pelo Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) no estado de São Paulo, são eventualmente ‘resolvidos’ por cabos ou sargentos, sem que isso resulte em documentação oficial. Há estudos indicando que certa proporção desses conflitos pode evoluir para casos mais graves, como agressões domésticas ou até assassinatos. Um cidadão desempregado, que se envolve num conflito familiar, poderia ter sido encaminhado a tratamento contra depressão antes que seu quadro evoluísse para aqueles casos graves que acabam na TV.

Brios da imprensa

Mesmo quando existem, nem sempre os dados estão disponíveis para consulta. Embora haja uma legislação garantindo o acesso a informações de interesse público, a burocracia e a má vontade de servidores costumam se apresentar como barreiras intransponíveis. No caso de documentos classificados como sigilosos, a situação se tornou ainda mais complicada a partir de 2002, com o decreto 4.553, assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quatro dias antes de deixar o governo, permitindo que alguns documentos sejam classificados como indisponíveis por até 50 anos, renováveis indefinidamente – o que, na prática, criou o conceito do sigilo eterno.

‘São considerados originariamente sigilosos, e serão como tal classificados, dados ou informações cujo conhecimento irrestrito ou divulgação possa acarretar qualquer risco à segurança da sociedade e do Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas’, diz o parágrafo 2º do decreto. Os dados são classificados como ‘reservado’, ‘confidencial’, ‘secreto’ e – este o caso a discutir – ‘ultra-secreto’. Estes documentos poderão ficar sob o manto do sigilo para sempre.

O decreto 4.553 define, na prática, que o Estado brasileiro considera a sociedade brasileira indefinidamente imatura para conhecer certos detalhes de sua história. Ele se encaixa perfeitamente no modelo que impera em praticamente todas as instâncias do poder público, o que explica, por exemplo, como um cidadão é obrigado a pagar as contas de serviços essenciais sem ter o direito de saber o que exatamente está pagando.

Do guichê da prefeitura de uma cidade interiorana aos ultra-secretos arquivos do Estado, a ausência do direito à informação tem no decreto 4.553/2002 um verdadeiro monumento.

Em nome da real liberdade de informação, não seria hora de a imprensa brasileira ter um pouquinho de brio e exigir a eliminação ou adequação desse estrume autoritário de uma vez por todas?

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Jornalista