Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A tentação obscurantista

É inacreditável o nível de obscurantismo e de ‘polícia’ corporativa e ‘polícia epistemológica’ nessas propostas de controle e restrição de um campo do conhecimento aberto e público, como o jornalismo.


Não existe mais lugar nas sociedades de radicalização da democracia, da democracia online, do jornalismo-cidadão, e que está experimentando novas formas de produção do conhecimento para esse tipo de raciocínio: mais embarreiramento, mais controle, mais poder, na mão de um grupo pequeno, seja de empresas, seja de profissionais, seja de corporações. Isso não qualifica nada. O que qualifica é uma boa formação, seja dentro ou fora das universidades.


Alguns profissionais e professores de jornalismo (em desespero inútil) parecem querer o monopólio ao reverso, que é simplesmente um espelho do monopólio mais indecente das empresas!


Será que o fim da exigência do diploma e os debates que se abriram de uma necessidade de mudança na formação e no mercado não serviram para nada? Só vão encontrar eco, aqui nesta lista, no pensamento mais reativo e francamente ultrapassado e obscurantista de retorno ao que não pode mais retornar?


Instâncias de poder


Enquanto isso os free lancers, os precários, os profissionais formados e os não-jornalistas continuam sem nenhuma proteçao, nem seguridade. o que se precisa é de uma associação dos trabalhadores precários. E não um novo embarreiramento que tira empregos.


As propostas reativas na lista de discussão do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo são realmente assustadoras. Ninguém vai sair do ‘piloto automático’ dos discursos prontos e encarar de forma nova a realidade que nos cerca?


Ordem dos Jornalistas? Parece até coisa de maçonaria, de seita obscurantista!


Citando: ‘Ordem dos Jornalistas, definidora de quem poderá exercer a profissão, após prestação de exame. Isso garantiria que somente os melhores estariam aptos a trabalhar’.


Que é isso, um novo darwinismo corporativo? E quem seriam os iluminados capazes de nos dizer quem são os ‘melhores’, esses profissionais muitas vezes desatualizados, fora do debate vivo, fechados ao novo, encerrados em dogmas obscuros do século 19, combatendo o uso de novas mídias e práticas, combatendo o jornalismo-cidadão?


É assustador. E triste ao mesmo tempo, ver tanta energia voltada para construir novas instâncias de poder e restrição e não novas formas de potencializar e formar mais e melhor e milhares de cidadãos aptos a exercer essa ocupação de interesse público.


No meu entender, o modelo das Ordens seria inútil para os profissionais e para os não profissionais do campo da Comunicação e do jornalismo. Não tem nada de utópico é bem realista, aliás. Utópico-anacrônico é propor a volta do diploma ou dessas Ordens, ao meu ver.


Existem outras formas de organização e de regulamentação que não simplesmente o poder cartorial. A fronteira que distingue profissional e amador no campo do jornalismo é péssima, não dá conta das mudanças no campo, é ruim mercadologicamente falando (o mercado já incorporou os ‘amadores’ os não-jornalistas faz tempo), mas é pior ainda politicamente.


Proteção e regulação


É espantoso que nenhuma associação de jornalistas no Brasil tenha conseguido se articular para encarar a atual realidade dos trabalhadores do campo da Comunicação, que ultrapassa em muito o caso dos jornalistas diplomados.


A questão da organização da profissão não atinge (e nunca atingiu) apenas os jornalistas com carteira-assinada, mas uma massa crescente de jornalista free lancers e autônomos, diplomados ou não.


Esses são os trabalhadores que precisam de qualificação e proteção. Para isso deveria existir associações levando em consideração a nova cena do trabalho no mundo e a emergência desse precariado, diplomado, pós-diplomado ou não.


Não simplesmente mais ‘restrição’, controle, penalização para diminuir a ‘empregabilidade’ dos trabalhadores da Comunicação. Para proteger meia dúzia ‘diplomada’ ou com ‘carteira assinada’ criando obstáculos para se exercer uma ocupação, ofício , atividade, profissão de interesse público.


Isso além de inútil (ver todas as formas de burlar o diploma praticadas por todas as empresas e a incorporação legitimada socialmente de outros saberes e profissionais no exercício da profissão) não agrega, não organiza o campo. A nova cena do trabalho (a precarização) explodiu o pensamento sindical clássico, em crise por falta de imaginação política, pois não está preparado para organizar, nem para defender o autônomo, uma realidade no campo da Comunicação. (Vão ficar lutando pela volta do diploma e da carteira assinada ao invés de pensarem em novas formas de proteção e regulação para quem nunca terá uma carteira assinada.)


A debater


Não sou contra nem regulamentação, nem organização, mas os sindicatos e associações que aí estão fizeram o quê exatamente para proteger e lutar em prol da massa de Comunicadores free lancers e autônomos (diplomados, inclusive)?


O pensamento das Ordens etc. não protege ninguém, não organiza e não protege os trabalhadores da Comunicação nem qualifica profissão nenhuma. Só concentra poder e penaliza.


Quais as novas formas de organizar e agregar? Isso sim é um problema que merece debate. Não existe nenhum modelo ‘pronto’, mas uma proposta a construir e não será poposta por ‘uma’ pessoa obviamente, mas por um movimento que tenha minimamente um discurso consistente e renovado, à altura das mudanças de contexto que estamos vivendo. O que existe de concreto são diversos movimentos nessa direção: o movimento dos Intermitentes e precários da França, o Movimento italiano de organização dos precários que culminou com o MayDay e depois o EuroMayDay, que congrega ativistas em toda a Europa em torno da mudança das leis previdenciárias, os autonomistas do México, Espanha e Argentina.


Na Itália e na França, o movimento dos ‘Intermitentes e precários’, reunindo todos os profissionais das artes, espetáculos e comunicação está discutindo e propondo ao governo francês novas formas de regimes de seguros para trabalhadores free lancers que raramente ou nunca terão carteira assinada, mas contratos provisórios, trabalhadores de empregos descontínuos, como jornalistas, radialistas, publicitários, artistas.


Ou seja, não partem mais do discurso irreal da luta por ‘verdadeiros empregos’ de carteira assinada, mas da realidade da precarização, para os direitos dos precários, como defende a Associação dos Precários da Ile de France, movimento fortíssimo e organizado.


Em obras


No Brasil, a discussão, foi levada ao Senado por Eduardo Suplicy, com a discussão da ‘renda universal’, salário mínimo para os trabalhadores precários e discussão de novas formas de seguridade para os trabalhadores intermitentes. Parte da esquerda engessada mal digeriu ou sequer entendeu a questão.


A discussão de novas formas de proteção para intermitentes foi lançada pelo Ministério da Cultura durante a gestão de Gilberto Gil, para contemplar os artistas que não têm seguridade/empregos formais, mesmíssima questão que atinge os trabalhadores da Comunicação.


Não há modelo pronto, há um enorme desafio de construção coletiva. Em todas essas experiências o que se constata é a falência dos sindicatos e associações clássicas de pensarem e propor – seja conceitualmente, seja praticamente – soluções para esse cenário.

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Professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro