Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A intranquilidade omitida

 

A presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministra Carmen Lúcia, comemorou a “absoluta tranquilidade” que, na avaliação do TSE, marcou as eleições de 7 de outubro. Carmen Lúcia exibe em suas manifestações públicas um zelo especial pela educação cívica. Infelizmente, a ministra e o tribunal, movidos pelas melhores intenções, são vítimas de uma visão fragmentada e fechada em sua própria lógica.

É justo que se comemore o êxito da gigantesca movimentação que levou 115 milhões de eleitores a 400 mil urnas operadas por quase 1,7 milhão de mesários. Urnas preparadas para receber mais de 140 milhões de eleitores inscritos, convocados a decidir em 5.568 municípios entre 15,5 mil candidatos a prefeito e 400 mil candidatos a vereador. Mas não é razoável falar em tranquilidade.

No próprio dia da eleição, sete pessoas foram assassinadas em Santos, cinco delas em sequência, por homens que estavam num carro. Isso aconteceu depois que um policial militar e um segurança foram mortos. Na antevéspera, oito haviam sido mortos no Guarujá: primeiro um policial, depois sete alvejados por dois homens numa motocicleta. Trata-se de uma guerra não declarada entre policiais militares e o grupo criminoso PCC.

Não são “crimes comuns”

À primeira vista, seriam “crimes comuns”, sem relação com o processo eleitoral. Mas são ocorrências que têm tudo a ver com política. Não por uma associação teórica entre poder, contrapoder e violência. A evidência do nexo concreto está nas tentativas de calar dois jornalistas: André Caramante, da Folha de S.Paulo, e Fábio Pannunzio, criador do Blog do Pannunzio, jornalista da TV Bandeirantes.

Ambos vítimas de autoridades da chamada segurança pública. Caramante prestou notável serviço ao divulgar na Folha, em julho, que o coronel PM da reserva Adriano Telhada, ex-comandante da Rota – tropa de choque motorizada que a mídia sintomaticamente insiste em classificar como “de elite” –, havia publicado no Facebook uma incitação à execução sumária de suspeitos, e conseguira arregimentar grande legião de adeptos dessa modalidade de fascismo que são os esquadrões da morte formados por policiais.

Logo começou uma campanha para alijar Caramante de seu posto jornalístico. Ele e sua família sofreram ameaças. O jornalista e a direção do jornal decidiram que o repórter passaria a trabalhar sem frequentar a Redação. E, como precaução em face de ameaças muito concretas, sairia do país. É hoje um exilado político (ver sua entrevista a Eliane Brum em “Um repórter ameaçado de morte”).

Telhada, correligionário de Serra

O incitador da violência contra Caramante foi eleito vereador com a quarta maior votação na cidade de São Paulo, pelo partido do governador Geraldo Alckmin, o PSDB. Telhada, que se orgulha de ter matado “em confronto” dezenas de homens, participará ativamente da campanha de José Serra, do PSDB, no segundo turno para a prefeitura paulistana. Não seria o caso de ampliar o conceito da ficha limpa?

A reflexão da ministra Carmen Lúcia e de seus pares se enriqueceria se eles levassem em conta um paradoxo aparente: o dia de “tranquilidade eleitoral” foi a parte visível de uma jornada em que atos de máxima violência foram cometidos contra e por homens da lei, os mesmos encarregados de ostensivamente manter a ordem.

O governador Alckmin, a propósito de execuções em episódio protagonizado pela Rota, disse: “Quem não reagiu, sobreviveu”. Lembra uma resposta dada ao chefe da cruzada contra os heréticos albigenses, Simão de Monforte. No início do século 13, durante a tomada de Béziers, sul da França, os guerreiros caçadores de cátaros não sabiam distinguir, entre os 7 mil habitantes da cidade, quais eram os bons católicos e quais os hereges. O legado apostólico em Cîteaux, Armand Amaury, depois bispo, teria dito ao comandante Monforte: “Matem todos e Deus reconhecerá os seus”.

O governo paulista também comete ilegalidade ao não dar a possibilidade de votar a 68,7 mil dos 69,8 mil presos provisórios (sem condenação definitiva em processo criminal) do estado de São Paulo. Só 1.068, ou 1,5% do total, puderam votar nas eleições municipais de 2012.

Maluf, patrono da Rota

Do lado adversário a situação não é melhor. Um dos integrantes mais conspícuos da caravana do candidato petista Fernando Haddad é Paulo Maluf, responsável, quando governador do estado (1979-1982), pela transformação da Rota em tribunal de rito sumário/pelotão de execução de uma pena de morte banida da legislação brasileira desde a primeira Constituição republicana, de 1891.

A violência antidemocrática contra o Fábio Pannunzio é de natureza jurídica. O jornalista explica em “O último post” que o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antônio Ferreira Pinto, lhe move processo devido ao conteúdo do tópico “A indolência de Alckmin e o caos na segurança pública”, em que havia críticas, mas, segundo Pannunzio, nenhuma calúnia, injúria ou difamação. O tópico foi retirado do ar por decisão de uma juíza de primeiro grau. Pannunzio anunciou que vai recorrer a instâncias superiores do Judiciário.

“Lembrai-vos de 37”

E aqui já estamos falando de outro fator de intranquilidade. Em primeira instância, a Justiça Eleitoral mandou retirar do ar fotos publicadas no Blog do Noblat, hospedado no portal do jornal O Globo, que mostravam a senadora Vanessa Grazziotin, do PC do B, candidata à prefeitura de Manaus, levando uma cusparada ao chegar a um debate. Dito assim, parece um contrassenso. Mas tem explicação: Grazziotin, após o episódio, afirmou na tribuna do Senado que fora atingida por um ovo. Fotos publicadas em redes sociais a desmentiram. Noblat deu a informação e as fotos. Em outra decisão, a justiça eleitoral do Amazonas negou a Grazziotin direito de resposta no blogue.

No Rio de Janeiro, o jornal O Dia precisou de uma decisão do Tribunal Regional Eleitoral para ser dispensado de publicar seis páginas de entrevistas com dois candidatos à prefeitura de São Gonçalo. O jornal havia recebido, no dia 3/10, liminar de uma juíza eleitoral determinando que o espaço fosse ocupado por palavras de Alice Tamborindeguy (PP) e Neilton Mulim (PR).

Todas essas ameaças e agressões ao exercício do jornalismo, pedra angular da democracia, recomendam menos triunfalismo. “Lembrai-vos de 37”, dizia Café Filho no Congresso Nacional, anos antes de aderir aos golpistas de 1955. Getúlio Vargas criou a Justiça Eleitoral, cumprindo uma promessa da Revolução de 1930, mas em 1937 deu um golpe de Estado e acabou com toda e qualquer eleição nas três esferas da Federação. Mais do que isso, acabou com a própria Federação, que só seria recomposta, no plano legislativo, em 1946.