Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A liberdade de expressão está sofrendo bullying

 

Considero uma honra participar deste painel, como representante do Conar, ao lado destes dois expoentes da sociedade brasileira. E me sinto autorizado a manifestar a grande admiração que o mercado publicitário tem por ambos.

Pretendo abordar o tema “Liberdade de expressão e democracia” a partir de um viés preocupante: “A liberdade de expressão está sofrendo bullying”.

Antes, porém, vou contextualizar nossa atividade em face desse fenômeno atual e perturbador.

Num plenário exatamente como este, em abril de 1978, foi aprovado por aclamação o “Código de Autorregulamentação Publicitária”, documento cuja execução foi confiada ao Conar. Estavam, então, suspensas as liberdades públicas e em vigor o AI-5. A opinião, a produção cultural, a notícia e o anúncio estavam submetidos à censura.

Uma década mais tarde, a Constituição de 1988 aboliu a censura e restabeleceu as liberdades de pensamento, criação, expressão e informação. E, ainda, consagrou a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor.

É neste ambiente que opera hoje a indústria da comunicação brasileira, reconhecida internacionalmente pela qualidade do conteúdo editorial e da publicidade que produz.

Tanto a informação editorial (notícia), como a informação comercial (anúncio) são transmitidas pelos veículos de comunicação, propiciando ao leitor, ouvinte, telespectador ou internauta situar-se no tempo e no espaço, obter dados para identificar opções, estabelecer comparações e principalmente fazer escolhas.

Vamos agora ouvir a advertência do filósofo John Stuart Millsobre a autonomia dos indivíduos e o emprego de suas faculdades para fazer escolhas:

“As faculdades humanas de percepção, julgamento, sentimento discriminativo, atividade mental e até mesmo a preferência moral só são exercitadas quando se faz uma escolha. Aquele que só faz alguma coisa porque é o costume não faz escolha alguma. Ele não é capaz de discernir nem de desejar o que é melhor. As capacidades mentais e morais, assim como as musculares, só se aperfeiçoam se forem estimuladas (…) Quem abdica de tomar as próprias decisões não necessita de outra faculdade. Apenas da capacidade de imitar, como os macacos. Aquele que decide por si emprega todas as suas faculdades.”

Pois bem: empregando tais faculdades, os cidadãos elegem representantes políticos, professam religião, constituem família e decidem o que fazer com seu precioso tempo e rico dinheirinho.

Processos éticos

Os consumidores são os senhores do mercado. Eles podem gostar do produto, mas não gostar do anúncio; podem não gostar nem do anúncio nem do produto e desprezá-lo na gôndola do supermercado; podem, ainda, gostar de ambos e livremente decidir consumir ou não.

Tais escolhas são livres e devem ser respeitadas.

Para que um produto possa ser anunciado, ele precisa ser lícito e seguro para o consumo, ou seja, os Poderes Públicos terão autorizado sua fabricação, comercialização e consumo.

A propósito, a Constituição de 1988 admite que cinco categorias de produtos (tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias) estarão sujeitas a restrições, desde que estabelecidas por lei.

Decretos, resoluções da Anvisa e portarias não podem impor restrições à publicidade.

O Código de Defesa do Consumidor já pune com detenção e multa os anunciantes que cometem propaganda enganosa ou abusiva, e a autorregulamentação tira de circulação os anúncios julgados antiéticos.

Vigora no Brasil o chamado “sistema misto de controle da publicidade”,pelo qual se combinam lei e autorregulamentação, conferindo aos cidadãos ampla proteção e parâmetros éticos à nossa atividade.

A publicidade interage com toda a sociedade, assim como as artes e a política.

As críticas, os festivais e as campanhas de propaganda comparativa compõem o contraditório típico da nossa atividade. Tanto os produtos quanto os anúncios são submetidos a permanente escrutínio.

Consumidores, imprensa, Procons, redes sociais e anunciantes concorrentes são livres para reconhecer virtudes e vantagens, e para apontar defeitos e inconveniências. E o CONAR, a qualquer momento, pode solicitar ao anunciante que comprove as alegações feitas no anúncio, corrija omissão ou excesso, garantindo amplo direito de defesa e de recurso.

Em 32 anos o Conselho de Ética do CONAR julgou mais de 7.500 casos. Em 2011, foram 366 processos éticos e 215 anúncios sustados.

Notícia falsa

Volto, agora, ao bullying.

É fato que o Brasil vive plenamente a democracia. Existe liberdade de imprensa. Os cidadãos são livres para fazer escolhas e as empresas para empreender, competir e se comunicar com os consumidores.

No entanto, a liberdade de expressão está sofrendo bullying.

Entendo por bullying os abusos por ilegalidade e anonimato, e as hostilidades de cunho ideológico e inspiração totalitária:

>> Como exemplo de ilegalidade, aponto as iniciativas da ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária ao tentar impor seriíssimas restrições à veiculação de propaganda comercial de medicamentos, bebidas alcoólicas, alimentos e refrigerantes.

A própria Advocacia Geral da União emitiu parecer contestando a competência da ANVISA para legislar sobre publicidade por meio de resoluções de diretoria. A Agência persistiu na ilegalidade e enfrenta por isso várias ações no Judiciário, cujas decisões têm garantido a liberdade de expressão comercial.

>> Bullying também é cometido na internet por quem, contrariando a Constituição, se escuda no anonimato. São grupos informais de pressão, ONGs. sem existência legal e endereços eletrônicos fajutos homiziados nas redes sociais. Não são, portanto, pessoas de carne e osso nem instituições dotadas de personalidade jurídica legitimadas a exercer a liberdade de expressão. Todavia, suas copiosas manifestações, frequentemente contra a publicidade, chegam a ser levadas em consideração até por autoridades. A quantidade dessas manifestações pode até impressionar, mas não é real.

Nesse “octógono” em que se converteu a ágora, os adversários da liberdade de expressão clamam por mais e mais regulação, impelindo o Estado a invadir a esfera privada da cidadania.

>> Outro exemplo: o bullying à publicidade de bebidas alcoólicas não poupou nem a Presidência da República: em exposição de motivos, decreto presidencial atribuiu a uma entidade de renome dados sobre acidentes de trânsito associados ao álcool que ela jamaispesquisara.

>> Mais um exemplo: a existência dos medicamentos de venda livre pressupõe o direito à automedicação, meio de aliviar sintomas e curar pequenos males. O bullying à publicidade manipula as estatísticas sobre intoxicação, debitando à conta da automedicação até suicídios consumados mediante a ingestão de barbitúricos de tarja preta e de pesticidas como o “chumbinho”, produtos controlados que, por lei, não podem ser anunciados.

>> Comete-sebullyingem nome da proteção à saúde, família e infância. Que o diga a publicidade de alimentos e refrigerantes, brinquedos e outros produtos destinados à criança. Um certo movimento espevitado e bem fornido de recursos pretende que as crianças sejam banidas de todos os anúncios e exerce pressão incisiva sobre o Congresso Nacional, ignorando os avanços da autorregulamentação no tocante ao público infantil.

De vocação fundamentalista, um desses movimentos se atribuiu a tarefa de dirigir a educação de nossas crianças, em substituição dos pais e educadores, como se seus adeptos fossem mais sabidos que os pais dos filhos dos outros. Como se a escolha do “sim” ou “não” da família devesse ficar ao arbítrio de uma ONG.

Recentemente, uma dessas organizações cometeu bullying ao divulgar aos quatro ventos que a Organização Panamericana de Saúde havia aprovado novas diretrizes para a publicidade e o marketing de alimentos e refrigerantes.

A notícia era falsa. No documento original, a OPAS advertia que se tratava da opinião de pessoas físicas, que não refletiam a posição daquele organismo.

É bullying para forçar o Estado a impor mais regulação à publicidade, na contramão do que preconizam atualmente a Organização Mundial da Saúde, o Parlamento Europeu e o FDA norte-americano, que estão encorajando as iniciativas de autorregulamentação para alimentos e refrigerantes.

“No caminho…”

Concluindo, vou alinhar alguns pontos para reflexão do Plenário, como contribuição do CONAR à tese da Comissão de Liberdade de Expressão e Democracia:

1. Produtos lícitos e seguros para o consumo podem, sim, ser anunciados, admitindo-se que restrições sejam estabelecidas por meio de leis e de autorregulamentação, que elas sejam necessárias, justas, razoáveis e proporcionais.

Afinal, o Brasil já tem leis demais e os ímpetos de ampliar a regulação revelam a crença equivocada de que restringir a liberdade de expressão fará bem aos brasileiros.

2.O anunciante não deverá ser obrigado à “autodetração”, ou seja, falar mal de si ou de seus produtos, defeito reincidente em vários projetos de lei e nas resoluções da Anvisa.

3.Devemos combater com igual vigor a censura à informação e a censura ao direito de escolher, de dissentir e de ser diferente. Neste sentido, devemos estimular o consumidor a empregar todas as suas faculdades, como dizia Stuart Mill.

4.Nenhum cidadão deverá sofrer bullying em razão de suas escolhas. Gostar de batatas fritas e refrigerantes; apreciar manteiga, ovo, carne vermelha e cerveja, ou preferir a bicicleta ao automóvel… todas essas são escolhas baseadas principalmente nas informações, tão abundantes quanto controversas, veiculadas na imprensa.

5.Nenhum consumidor deverá sofrer bullyingpor fazer parte da minoria. A democracia não pode prescindir dos contrários e das minorias. O mercado também não.

6.Devemos combater o bullyingem todas as suas abomináveis formas, como a intolerância, o mau humor e o politicamente correto, que obscurecem a criação publicitária e podem aniquilar a liberdade expressão comercial que honramos.

A propaganda comercial é a principal fonte dos recursos que viabilizam o direito à informação, respeitando a independência dos veículos e a liberdade de imprensa.

Este nobre papel institucional e político da propaganda comercial nos impõe o dever de lutar pelas prerrogativas constitucionais da atividade com o mesmo destemor com que o fazem os jornalistas. Este nobre papel nos impõe o dever de repelir as tentativas maliciosas de banir categorias anunciantes ou de afastá-las da mídia para, desse modo, colocar em risco a saúde financeira das empresas de comunicação.

Encerrando, vamos ouvir trecho do poema que foi adotado como legenda pelo Centro de Referência sobre Liberdade de Expressão instituído pelo Conar e pela Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo, de autoria do poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, “No Caminho, com Maikovski”:

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

***

[Gilberto C. Leifert é presidente do CONAR]