Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A opção entre selvageria e Estado de Direito

O filme Tropa de Elite tem despertado reações antitéticas entre os que assistiram às sessões de tortura e assassinato perpetradas pelo capitão Nascimento e seus comandados. Não são poucos os que vêem no filme uma descrição fiel das sombras que se erguem por trás do Estado de Direito brasileiro: um Estado normativo forjado sob os amargos ensinamentos de vinte anos de ditadura, e inspirado pelas declarações de direitos que se seguiram ao pesadelo de duas guerras mundiais, mas que, na prática, ainda não conseguiu sequer mudar as perversas bases teóricas com que uma de suas principais instituições repressoras costuma atuar. Para esses – e entre eles, eu me incluo –, a violência empregada pela polícia no filme é real, sem exageros, embora injustificada e lamentável. Não se tem dúvida de que existem muitos ‘capitães Nascimento’ pelo país afora, de quem gostaríamos, no entanto, estivesse o Estado brasileiro liberto.

Há, porém, muitos outros espectadores que, não obstante tenham compreendido o realismo daquelas ações de selvageria policial retratadas na obra, ao invés de censurá-las as aplaudem como solução para o problema da criminalidade. Quantos não têm alçado o intrépido agente público ao posto de herói nacional, enaltecendo-lhe a brutalidade com que exerce o ofício? É o caso das adolescentes que, entrevistadas pela revista CartaCapital, não hesitaram em dizer: ‘Se não tem jeito prendendo, tem de matar.’

Atrocidades em nome do bem comum

Reações como essas não são apenas insensatas. Se traduzirem a defesa pública e explícita da truculência policial, ultrapassam todos os limites da liberdade de expressão, e podem até, sob certas condições, constituir o delito previsto no art. 287 do Código Penal brasileiro (fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime), já que, felizmente, tortura e execuções sumárias são crimes repudiados por todas as nações civilizadas, inclusive pelo Brasil, signatário das mais diversas convenções internacionais voltadas à proteção de direitos humanos.

Tais reações elogiosas à selvageria são, porém, sobretudo, ingênuas. Não me refiro, naturalmente, aos que não dão a mínima para a vida de quem não seja parente, amigo ou de seu círculo de relações sociais. Para esses, pouco importa que a violência policial gratuita se dirija contra inocentes ou criminosos. Pouco lhes interessa que a lei dos povos civilizados proíba semelhantes atos. Afinal, palavras como misericórdia e Estado de Direito só lhes integram o vocabulário quando instrumentadas ao próprio interesse. Importa-lhes, isto sim, tão-somente retirar de circulação quem lhes ameaça a segurança e a daqueles que lhes são caros. E se, para tanto, for necessário torturá-los ou matá-los, não há motivo para lamentos, senão para comemoração.

Quero crer que quem assim pense é minoria. E contra eles não é preciso argumentos. Basta-lhes a lei. A ingenuidade a que aludo é a daqueles que defendem as ações do capitão Nascimento sem ter em vista o próprio interesse, mas o bem comum, e que tendem a ver a violência policial apenas como efeito colateral de ações que, em si mesmas, são boas (o combate à criminalidade). Esses ignoram as duras lições da história que levaram os países democráticos a adotar rígidos controles ao exercício do poder, em especial do poder que atua armado – capaz de ferir e de matar. Desconhecem que, em nome do bem comum, as maiores atrocidades foram cometidas: povos foram escravizados e tiveram suas riquezas roubadas, pessoas foram jogadas à fogueira, insurrectos esquartejados e expostos à praça pública, guerras declaradas, revoluções sanguinolentas deflagradas, e muitos… muitos inocentes condenados.

O flagelo da criminalidade

Essa ingenuidade é perdoável em quem está tão próximo do poder (econômico ou político) que dificilmente se sujeitará às ações violentas da polícia. Nessa situação, pode-se, irrefletidamente, agir com base em normas que não se desejaria que se tornassem leis universais, isto é, aptas a recair mesmo sobre os entes mais queridos. Quem, porém, permanece longe desses círculos, deve preocupar-se, pois, cedo ou tarde, sofrerá, em nome do bem comum, a mesma violência que tende a exaltar nas ações do Bope: tal qual Jean Charles, o brasileiro morto pela polícia inglesa em nome da ‘guerra contra o terror’. Às potenciais vítimas da violência policial não é permitida tanta ingenuidade. Devem carregar sempre consigo, como amuleto, a sentença de Oscar Wilde proferida em seu De Profundis, segundo a qual ‘tudo aquilo que acontece aos outros acontece a nós’.

Mas, mais do que tudo, o que não deve deixar de ser dito é que um Estado que educa seus súditos para a violência torna-os insensíveis à dor alheia e contribui para soterrar virtudes tão nobres quanto necessárias, como a misericórdia, a solidariedade e a compaixão, sem as quais não conseguiríamos nos relacionar nem mesmo com a própria família.

Somos conscientes de que a criminalidade não tem suas raízes apenas na questão social. O crime, como, de resto, os demais fenômenos sociais, possui causas múltiplas – biológicas, psicológicas, sociológicas e culturais. A desigualdade social seguramente inclui-se entre essas causas, conquanto seja óbvio que a resolução dos problemas ligados à pobreza não baste para pôr fim ao flagelo da criminalidade.

Reação a agressão e assassinato

Contudo, é também hora de perceber que a violência sempre chama mais violência. Se tal afirmação não corresponde a uma regra da natureza, ou a um princípio da razão, trata, sem dúvida, de uma lei da história: à revolução francesa seguiu-se um Estado de terror; à revolução russa, verdadeiro massacre de milhões de pessoas; às justificáveis ações dos países aliados para conter Hitler sobreveio a barbárie de Hiroshima e Nagasaki; à guerra contra o terrorismo sucedeu Abu Ghraib, Guantánamo e o morticínio que ainda acontece no Iraque.

Nunca a polícia brasileira matou tanto; nunca se encarcerou tanta gente no Brasil; e nunca a criminalidade violenta esteve tão presente como hoje. À violência da polícia e ao inferno das penitenciárias, que acontecem sob o olhar indiferente dos ‘cidadãos de bem’, segue-se a violência dos criminosos; a que, por sua vez, segue-se uma resposta mais violenta ainda da polícia; e outra resposta ainda pior dos criminosos.

Não se pretende aqui levar a idéia da não-violência ao extremo, atribuindo valor absoluto à vida humana: a violência cometida em legítima defesa, e da qual venha a resultar a morte de alguém, ainda continua a ser, com razão, prática legitimada pela consciência jurídica e moral universal. Todavia, entre a reação moderada para impedir que uma agressão iminente se consume e o assassinato de quem já não oferece resistência alguma, há uma distância muito grande.

O remédio da Constituição

Impõe-se uma observação final. Alguns veículos da grande imprensa têm demonstrado, nos últimos tempos, uma completa aversão a discursos que enunciem, entre as causas da criminalidade, a desigualdade social. No entanto, ao identificá-los como meras expressões do que chamam de esquerdismo, experientes jornalistas incorrem no mesmo erro que condenam: simplificam, muito além do necessário, uma questão complexa, polarizando-a: como se tivéssemos que escolher entre ‘a brutalidade dos bandidos’ e a ‘brutalidade da polícia’. Essa atitude fica clara na reportagem de capa da revista Veja, veiculada esta semana, em que aborda o filme Tropa de Elite: de um lado, temos a repulsa veemente à criminalidade de rua (o que é correto); de outro, uma velada condescendência aos métodos igualmente criminosos da polícia, a começar pela tese de que a obra alcançou o sucesso porque ‘trata bandido como bandido’ (esta é a expressão com que a matéria é anunciada).

Desgraçadamente, nunca nos ensinaram (e, pelo visto, não será a grande imprensa a fazê-lo) o postulado fundamental do liberalismo político, que consiste na abolição do supremo mal da tirania e de todas as formas de crueldade, em especial daquela exercida por quem atua sob as vestes do Estado. Em compensação, temos apreendido, com particular êxito, o discurso da guerra. Nesse tipo de discurso, o assassinato, de crime perverso passa a ser racionalizado e justificado por um sistema de pensamento: ‘Ele, que era solitário como o grito, ei-lo universal como a ciência’ – diria Camus.

Para nosso próprio bem, devemos abandonar esse discurso. Se não podemos pedir aos criminosos que deponham as armas, podemos exigir de nossos governantes que parem essa guerra e instaurem o Estado Democrático de Direito. Nada de remédios amargos – desculpa histórica para toda sorte de opressão e autoritarismo. Dê-se o remédio previsto pela Constituição: educação, saúde, moradia e segurança pública preventiva, de um lado; investigação, processo e pena justa e digna, de outro, inclusive para os que promovem atos de tortura e execuções, os autorizam, ou os incentivam.

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Procurador da República