Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A polícia da ditadura

Reportagem publicada na edição de sexta-feira (28/12) do Estado de S. Paulo, com destaque na primeira página, dá ao fim de ano cores muito sombrias: diz o jornalão que a polícia paulista mata uma pessoa a cada 16 horas, tendo acumulado até novembro passado um total de cadáveres maior do que a mortandade ocorrida em 2006, quando a principal organização criminosa em ação no estado promoveu uma onda de ataques a policiais, instalações oficiais e ônibus.

A reportagem tem números preocupantes: há seis anos, quando a capital paulista e outras cidades foram paralisadas pelos criminosos, 495 pessoas foram mortas em ações policiais. Neste ano, o número de vítimas chegou a 506 até novembro.

O jornal certamente colheu essa estatística ao preparar a retrospectiva do ano que se encerra. Só então seus editores parecem ter despertado para um dos aspectos mais graves da onda de violência que, desde o mês de maio, assusta a população do estado mais rico do país.

Autoridades coniventes

Embora o próprio Estadão tenha informado, ao longo do semestre, sobre a hipótese de o aumento dos homicídios ter relação com ações de vingança por parte de policiais militares, os indicadores oficiais ainda não haviam sido analisados sob o ângulo exclusivo das mortes causadas por agentes da lei.

A despeito das explicações oficiais, uma verdade assoma por baixo dos números: a polícia prefere matar a tentar resolver conflitos. A violência também tem outro lado: neste ano, até a quarta-feira (26/12), nada menos do que 106 policiais haviam sido mortos por criminosos. No ano passado, foram 48 – ou seja, menos da metade.

Para melhor comparação, convém também observar que em 2006, quando a organização conhecida como Primeiro Comando da Capital, o PCC, declarou guerra à polícia, 29 policiais militares foram mortos em serviço. Segundo analistas consultados pelo Estadão, tudo começou em maio deste ano, quando a PM matou seis suspeitos que se reuniam num lava-rápido da zona leste de São Paulo. Segundo a polícia, eles seriam integrantes do PCC e teriam reagido.

Especialista citado pelo jornal afirma que a reação da organização criminosa foi imediata, ordenando o assassinato de agentes da lei envolvidos no episódio. As primeiras mortes de policiais foram tratadas burocraticamente e, segundo a reportagem, a omissão das autoridades estimulou o agravamento descontrolado do conflito.

Os indicadores da violência no estado seriam, a partir daí, muito influenciados por uma situação de guerra não declarada: grupos de execução formados por policiais passaram a eliminar criminosos conhecidos e meros suspeitos de ligação com o PCC. Em retaliação, o PCC ordenou execuções de policiais.

As estatísticas são importantes para esclarecer as dimensões verdadeiras de um problema que afeta diretamente a vida dos cidadãos, e cujas origens o governo do estado procura dissimular.

O Estadão se aproxima da questão o constatar que o volume de mortes está relacionado ao aumento da letalidade nas ações policiais. No mesmo período em que aumentou significativamente o total de vítimas da polícia, os crimes contra o patrimônio, que normalmente são a causa dos confrontos, mantiveram-se relativamente estáveis. O que houve, claramente, é que a Polícia Militar ganhou licença para matar.

Quando as autoridades superiores não se posicionam claramente contra a violência policial – ao contrário, o governador de São Paulo fez seguidas declarações justificando mortes de suspeitos –, os agentes se consideram liberados para atirar primeiro e depois pedir documentos.

Com a Bíblia na mão

No vácuo da omissão do governante, o “espírito de corpo” da tropa é dirigido por líderes irresponsáveis que estão fora da instituição, como os ex-oficiais da PM que incitam às execuções por meio de blogs na internet. Jornalistas que conduzem programas populares sobre crimes, na TV e no rádio, também contribuem para o agravamento do estado de barbárie, ao transformar em heróis os policiais mais violentos.

Por trás de tudo reina ainda o padrão de repressão construído ao longo da ditadura militar. Um ranço de preconceito contra homens pobres e jovens negros e pardos determina a prontidão para apertar o gatilho.

Quando a vítima é um cidadão de classe média, como foi o caso do publicitário Ricardo Prudente de Aquino, o caso ainda ganha alguma repercussão na imprensa. Ele foi morto a tiros em julho, porque os policiais que o abordaram acharam que estava sacando uma arma. Era um telefone celular.

Quando a vítima é pobre, o caso não merece mais do que uma nota no pé de uma coluna, como no caso do coletor de lixo Antonio Marcos dos Santos, assunto escondido na edição de sexta-feira (28) do Estadão.

Santos foi morto pelo PM João Samir de Oliveira na cidade de Avaré, porque o policial entendeu que ele ia sacar uma arma. Mas a vítima apenas tentava pegar sua Bíblia que estava sob a camisa.