Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Anistia sem memória

Este começo de 2010 trouxe pela imprensa uma feroz turbulência. Quando se julgava que tudo era paz, Os anos da ditadura militar voltaram à lembrança dos brasileiros. Isso porque o 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos ameaçou criar uma Comissão da Verdade, de verdade, para os crimes que a repressão política cometera. Absurdo. 25 anos depois do fim oficial da ditadura, esse é um programa tão avançado para o presente, que pretende responsabilizar criminosos por atos cometidos há 45 anos.


Não pode. Começam assim, disseram os alcançados pelas denúncias. Primeiro, as ideologias alienígenas mudaram ‘revolução de 31 de março’ para ‘golpe de 31 de março’. Depois, de 31 de março foram para golpe de 1º de abril. Depois, de patriotas nos fizeram golpistas. De golpistas querem dizer agora que somos criminosos. Nesse passo, vão pedir nossas cabeças. E reagiram, pelo ministro Nelson Jobim. Aquele, que adora exibir o garboso peito-de-pombo com verde-oliva, e com razão, porque não há soldado mais gordo e pomposo no Brasil. Então Nelson declarou, em glorioso off: ‘Ou muda, ou eu e meus chefes militares…’. No que foi apoiado pelas armas de tevês e jornais assinalados.


Contra a humanidade


Este começo de 2010 seria uma ópera-bufa, se não houvesse tanto sangue e canalhice encobertos. Mas a sorte do Brasil, e da humanidade, é que em momentos assim crescem a resistência, os movimentos, fora dos jornais e da televisão. Em todo o Brasil, estudantes, intelectuais, militantes políticos, acordados, protestam contra o esquecimento da história. Manifestos rondam e assombram a reação contra o futuro, dentre os quais destaco trechos de um, assinado por judeus progressistas:




‘No Brasil, não é de hoje que se tenta bloquear o acesso aos arquivos dos aparelhos de repressão. Mais do que isso: uma espécie de solidariedade corporativa cria obstáculos para esconder todos os detalhes operacionais daqueles aparelhos e fazer com que permaneçam desaparecidos corpos de suas vítimas.


‘O artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição brasileira considera a prática da tortura crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. O Brasil é signatário da Convenção de San José, de 1969, que declara a tortura crime contra a humanidade. Assim sendo, quando agentes do Estado torturam prisioneiros que estão sob sua responsabilidade, cometem crime que não pode ser perdoado por qualquer lei deste país’.


Ainda rondam…


Enquanto escrevo, as últimas notícias querem dar a entender que o desentendimento entre militares e a área de direitos humanos em torno da terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos foi resolvido, com um novo decreto assinado pelo presidente Lula que retira a expressão ‘repressão política’ e mantém o termo ‘violação aos direitos humanos’.


Os jornais, revistas e televisão não veem nem querem ver o que se passa bem à sua frente. Agora mesmo, enquanto escrevo, ocorre uma sessão histórica da Anistia em Brasília. Nela, são julgados entre outros os processos de filhos de João Goulart, Brizola, Prestes, Bacuri e Soledad Barrett. Soledad, aquela que foi mulher do Cabo Anselmo. Aquela sobre a qual a advogada Mércia Albuquerque declarou para toda a eternidade:




‘Soledad estava com os olhos muito abertos com expressão muito grande de terror, a boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade que estava, eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas porque era uma quantidade grande e o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror’.


Essas mortos da ditadura são imortais. Eles ainda rondam e metem medo.

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Jornalista e escritor; Recife, PE