Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Anotações sobre um gesto pós-racial

Nunca a grande imprensa brasileira falou tanto sobre a questão racial quanto agora. De algum tempo para cá, o tema comparece em editoriais, artigos, crônicas, reportagens, dando ou não seguimento a acontecimentos significativos, como a ida de um grupo de intelectuais ao Supremo Tribunal Federal para entregar um manifesto contra as cotas que favorecem negros nas universidades.

As posições favoráveis e contrárias já são mais ou menos conhecidas (embora não tanto as motivações profundas dos opositores). Mas uma notícia que pode ter passado despercebida é capaz de lançar uma luz nova sobre o assunto: a atriz Marília Pera convidou o ator negro Lázaro Ramos para um dos papéis principais da peça The Vortex, que será encenada no Rio. O personagem a ser vivido por Lázaro é, no texto, branco, de família tradicional inglesa (O Globo, 9/6).

O notável do fato é que, até agora, o universo ficcional brasileiro tem obedecido ao cânone da verossimilhança sócio-histórica. Este pode ser exemplificado da seguinte forma: um fictício presidente da República não seria jamais interpretado por um negro (em peça, drama televisivo, cinema, filme etc.) por infringir a regra do verossímil, que apontaria para a evidência (meia-evidência, na verdade…) de que nunca houve um primeiro mandatário negro no Brasil. Ora, se se trata de ficção, por que atender aos requisitos da realidade histórica? A televisão norte-americana tem dado uma resposta singular à questão, ao colocar um negro como presidente da República numa série policial (24 Horas). Agora, é a vez de Marília Pera romper o cânone.

O corner do binarismo

A iniciativa da atriz é de natureza ‘pós-racial’. Primeiro, tem implícito o pressuposto – corretíssimo – de que raça só existe uma: a humana, distribuída numa miríade de cores ou fenótipos, dos claros aos escuros. Depois, a escolha obedece apenas a critérios técnicos de adequação do ator ao personagem, e não à verossimilhança fenotípica. Um ser humano de carne e osso vai viver um outro, feito de imaginação e papel, no teatro. Lázaro Ramos já havia sido protagonista do filme O Homem que Copiava, de Jorge Furtado, sem que tenha sido levantada em qualquer passagem do roteiro a questão da cor da pele. Aos olhos do espectador, um homem, simplesmente um homem, relaciona-se com outros em proximidade, desracializado.

Há uma coincidência singular entre o fato referente à peça inglesa e o momento histórico em que o negro-mestiço Barack Obama é indicado como candidato do Partido Democrata à presidência da República dos Estados Unidos. ‘Negro-mestiço’ para nós, ‘negro’ para o sistema classificatório norte-americano (onde vige a one drop rule, ou seja, uma gota de sangue negro define racialmente o sujeito), Obama merece, assim como Lázaro Ramos, o epíteto de ‘pós-racial’. Isto quer dizer que não racializou a sua campanha, apesar das tentativas dos adversários no ring das primárias, de levá-lo ao corner do binarismo racial.

Análises e soluções diferenciadas

Tudo isso pode soar aos desavisados como base argumentativa contra as cotas no Brasil. Não é bem assim. Um artigo do cantor e compositor Martinho da Vila (O Globo, 10/6) no dia seguinte ao da notícia da peça também traz luz para o assunto. Martinho conta de seu espanto, na primeira viagem aos Estados Unidos, ao ver estampados em cartazes, nas ruas e em lugares de destaque, as imagens de negros socialmente proeminentes. Espantava-o o grau de visibilidade pública de cidadãos uma vez descritos pelo escritor Ralph Ellison como ‘homens invisíveis’. Isto não se dá por acaso, nem por pura e simples graça do poder: os negros, com todas as suas contradições internas, empenharam-se durante gerações na luta por direitos civis igualitários.

Ora, dirão, esse binarismo radical que ensejou a luta por direitos mais civis nos Estados Unidos não é o caso brasileiro. O que é a mais absoluta verdade e contraria a que se apliquem aqui, sem mais nem menos, critérios válidos para a realidade norte-americana, tal como a ‘regra da gota única de sangue’. Mas da mesma maneira não se pode invocar o ‘pós-racialismo’ de Obama para dizer que o Brasil já dispõe há muito da fórmula agora encontrada pelo candidato democrata. São realidades diferentes, que induzem a análises e soluções diferenciadas. A boa saúde mental e cívica recomenda uma pausa nos reflexos especulares do centro do Império.

‘Relação social de raça’

Uma pausa dessas pode servir para pensar que possivelmente o gesto pós-racial da atriz Marília Pera tenha sido ‘sobredeterminado’ (uma múltipla determinação, em que o fenômeno Obama pode até ter tido algum peso) pela conjuntura sócio-político-cultural que a temática das cotas suscitou no Brasil.

Desde o Prouni, ganhou foro público a questão da cidadania de segunda classe, de sua exclusão sistemática das oportunidades historicamente concedidas aos que já nascem ‘cotados’ ou ‘patrimonializados’ pela cor socialmente valorizada. Mas as cotas de agora – recurso, para mim, provisório – representam uma estratégia de visibilidade mais forte, esta que os Estados Unidos de algum modo já obtiveram, sem, entretanto, resgatar a maioria negra de seus bolsões de pobreza, nem diminuir esse mal-estar civilizatório que é a discriminação racial. O conceito científico de raça acabou, mas não acabou a ‘relação social de raça’, isto é, o senso comum atravessado pelo imaginário racialista.

Visibilidade valorizada

Os intelectuais que, em jornais ou na academia, formaram um ativo bloco orgânico para pregar contra as cotas, não desconhecem o fato de que a cidadania, conceito eminentemente político, nasce no solo da visibilidade dos membros de uma comunidade: o sujeito visível tem voz pública; o invisível, não. O escravo grego não podia ser cidadão porque não dispunha do ‘capital’ de visibilidade suficiente (naturalidade da língua, da fratria etc.) para falar na ágora.

A decisão sobre quem pode ou não falar, ser visto e ocupar os lugares do privilégio, é de natureza estética, no sentido radical desta palavra. Na raiz, estética e política coincidem. Uma política de cotas não implica que se acredite na existência de raças, e sim que as diferenças estético-fenotípicas têm conseqüências para a igualdade dos cidadãos. Sobre a branquitude da paisagem eurocêntrica projeta-se alguma ‘colorização’ de espaços – fonte do espanto de Martinho da Vila, ponto de partida de uma visibilidade valorizada.

Não se pode realmente acreditar que as cotas venham resgatar a situação socioeconômica dos escuros e desfavorecidos, nem resolver o problema da introjeção histórica dos estereótipos racistas. O exemplo do pós-racialismo é algo de fato desejável, pode ser uma meta. Mas não é algo que esteja aí à disposição dos interessados, como uma espécie de fruto natural gerado pela suposta boa consciência daqueles que dizem temer a ‘racialização’ da sociedade brasileira. Em termos coletivos, será o resultado de lutas e cotas em que venham a envolver-se também empresas e outras instituições pertinentes, além do Estado. A visibilidade valorizada é um começo razoável.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro