Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As tradições inventadas

A última semana de 2008 foi uma espetacular demonstração de como a mídia brazuca adora uma boa tradição, desde que a mesma seja importada.


Estava em férias na cidade de Eldorado, SP (antiga Xiririca), e fiquei abismado ao ver o que vi com estes olhos que a terra há de comer. A rede Globo fez uma cobertura espalhafatosa da ‘tradição chinesa’ chamada Barco do Dragão, a qual agora também é comemorada no Brasil (ver aqui).


Desliguei a TV e tentei esquecer o episódio, mas não consegui. Lampejos cintilantes percorreram meu cérebro para unir os estudos que fiz da obra de Hans Staden, do livro A invenção das tradições (Eric Hobsbawm e Terence Ranger) ao referido o incidente jornalístico.


No princípio da colonização, os Tupinambás ainda dominavam a costa. Eles percorriam longas distâncias marítimas com a Igara, canoa escavada em um único tronco que podia acomodar vários remadores sentados em fila indiana. Estas canoas também eram utilizadas em expedições guerreiras, como deixa claro o relato de Hans Staden (ver aqui e aqui).


Revivendo a Igara


A China não colonizou o Brasil. Gostemos ou não, a comunidade chinesa no país é minúscula. Por mais que admire a história e a cultura do Império do Meio, não consigo entender porque raios alguns brasileiros resolveram importar a tradição do Barco do Dragão. Afinal, esta é uma tradição chinesa, e não brasileira.


Tradição é algo que remonta a um passado longínquo de uma determinada comunidade. Sendo assim, as tradições brasileiras só podem nascer da nossa história social e cultural. A colaboração dos indígenas na definição de nossa brasilidade é evidente e foi amplamente atestada e documentada por Darci Ribeiro (ver aqui). Se as pessoas que organizaram o evento Barco do Dragão querem uma tradição marítima legítima, teriam que reviver a Igara Tupinambá. Seria maravilhoso vê-los percorrer a distância entre São Vicente e Ubatuba remando uma canoa como faziam os antepassados de milhões de brasileiros.


Dragão está na crista da onda


Em sua obra A invenção das tradições, Eric Hobsbawm afirma que:




‘… pode ser que muitas vezes se inventem tradições não porque os velhos costumes não estejam mais disponíveis nem sejam viáveis, mas porque eles deliberadamente não são usados, nem adaptados. Assim, ao colocar-se conscientemente contra a tradição e a favor das inovações radicais, a ideologia liberal da transformação social, no século passado, deixou de fornecer os vínculos sociais e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradições inventadas.’


Não estamos no século 19, mas a cobertura do evento Barco do Dragão pela Rede Globo demonstra como ainda não saímos definitivamente daquele universo ideológico. No Brasil do século 21, a verdadeira tradição da Igara Tupinambá parece não importar (muito embora as canoas ainda sejam construídas e utilizadas com sucesso por comunidades ribeirinhas). A nova tradição importada da China parece mais adequada às ambições diplomáticas e comerciais brasileiras e certamente dá mais ibope televisivo. Os idealizadores, promotores e divulgadores do evento soterraram silenciosamente nossa verdadeira história para inventar uma nova tradição.


Até quando a nossa Igara Tupinambá continuará no esquecimento? Ao que parece, por muito tempo. Agora é o Barco do Dragão que está na crista da onda jornalística. Ano que vem o evento será maior e terá uma cobertura ainda mais demorada.

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Advogado, Osasco, SP