Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As ‘tragédias por trás das tragédias’

No Brasil, de uns tempos para cá, foram ressuscitadas discussões relativas à diminuição da maioridade penal (de 18 para 16 anos), por meio da PEC 171/93, de autoria do deputado federal Benedito Domingos (PP-DF) [ver aqui]. A PEC, como é de conhecimento de muitos, busca alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição Federal sob pretexto do combate à violência, fazendo crer que, como em um passe de mágica, aspectos culturais da nossa sociedade irão se modificar a partir de incrementais medidas repressivas.

Assim como muitos cidadãos preocupados com as repercussões práticas da PEC 171, diversas organizações de peso vêm tentando desmistificar o argumento da redução, ressaltando a ineficácia de políticas públicas (quando existentes) e a necessidade de “responsabilização do Estado em garantir os direitos constitucionais fundamentais para todas as crianças e adolescentes”, bem como a necessidade de assegurar às crianças e aos adolescentes “condições igualitárias pra o desenvolvimento pleno de suas potencialidades”, como destacado pelo manifesto da Cáritas Brasileira contra a redução da maioridade penal [ver aqui].

A questão sobre capacitação e promoção das potencialidades humanas vem, desde os anos 1990, ganhando espaço cada vez mais relevante na agenda e nos debates sobre como operar e realizar o desenvolvimento. Criava-se, nesse momento, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que reúne três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde. Convém então averiguarmos algumas das noções desenvolvidas nesse âmbito por Amartya Sen, autor do famoso índice e laureado com o Prêmio Nobel de Economia pelas suas contribuições à chamada Economia do Bem-Estar Social. Segundo Sen, as iniciativas de desenvolvimento devem ser abordadas segundo processos de expansão das liberdades das quais as pessoas desfrutam, e que permitem aos indivíduos evitar certas privações – a fome e a insegurança sendo duas delas.

No dia 19 de maio, uma terça-feira, o médico Jaime Gold foi morto a facadas enquanto pedalava na Lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul (e mais nobre) do Rio de Janeiro. Se valendo da ocasião, o secretário de Segurança Pública, José M. Beltrame aproveitou para reafirmar a necessidade de redução da maioridade penal [ver aqui e aqui], sendo respaldado por diversos canais midiáticos, destacadamente R7 [ver aqui e aqui], que fez questão, em mais de um momento, de expor que o adolescente de 16 anos “tem 10 passagens pelo Degase”, “15 anotações criminais”, entre outros dados. Felizmente para o senso comum, muito carecido de valorização, os jornais O Dia e Extra trouxeram à tona a “tragédia por trás da tragédia”. Como bem colocado pelo jornal Extra: “Menor suspeito de morte na Lagoa deixou a escola aos 14 anos, só viu o pai duas vezes e era negligenciado pela mãe” [ver aqui]. A ex-mulher de Jaime Gold, Marcia Amil, também declarou ao jornal O Dia que “Jaime foi vítima de vítimas” e que “enquanto nosso país não priorizar saúde, educação e segurança” teriam cada vez mais pessoas mortas no principal cartão postal do país, salientando que “não só médicos, afinal, morrem cidadãos todos os dias em toda a cidade” [ver aqui].

A qualidade da educação

Analisando todos esses discursos, eles nos desafiam com uma série de perguntas perturbadoras: por que, em um país que concentra as 19 das 50 mais violentas cidades do mundo, e onde os que mais morrem são jovens, homens e negros, um secretário de Segurança Pública se sente no dever de se declarar indignado apenas quando morre um cidadão da classe média-alta? Por que, enquanto um jovem, pobre e negro é punido e marginalizado por alegadamente matar um ciclista branco e de classe média-alta, um jovem, rico e branco é absolvido por ter matado um ciclista pobre e negro [ver aqui]? Por que, ainda que todas as evidências apontem para precariedades nos arranjos de saúde e educação, a proposta para o combate à violência consiste em reprimir e violentar ainda mais? Perguntas talvez eternamente órfãs de respostas. Mas uma coisa parece sobressair de tamanho infortúnio: a questão da violência deve ser olhada para além de sua pontualidade – é preciso que sejam problematizados os princípios sobre os quais essas questões se desdobram.

De acordo com Sen, uma vez que o conceito de desenvolvimento se define pelo processo de expansão das liberdades, um tipo particularmente importante de liberdade seriam as oportunidades sociais, as quais referem-se aos arranjos que a sociedade estabelece como, por exemplo, educação e saúde. O princípio por trás da pertinência desse “tipo de liberdade” diz respeito à capacidade do indivíduo de promover sua própria felicidade, idealmente igualando a capacidade de todos de se fazerem felizes. Outro ponto que não poderia passar despercebido do pensamento de Sen é que as oportunidades sociais, enquanto liberdades instrumentais – ou seja, como instrumentos para o desenvolvimento –, têm o poder de complementar e auxiliar a expansão de outras liberdades, como, por exemplo, a liberdade conferida pela segurança. De acordo com essa perspectiva, as iniciativas de desenvolvimento promovidas por diversas organizações internacionais relevantes apontam sem cessar para a necessidade de promoção da inclusão social por meio da educação, sendo essa um meio para, e objetivo final, do desenvolvimento.

Não seria de espanto, então, se acrescentássemos a essa equação social fracassada o projeto de lei (PL) que proíbe alunos mudarem de série ou módulo na educação básica por meio da promoção automática. O PL 8.200/2014, de autoria do deputado Alexandre Leite (DEM-SP), pode parecer, à primeira vista, para muitos, uma solução simples para um problema obscuro do nosso país: a má qualidade da educação, e o fato de que, “no final do ensino médio, metade dos alunos não consegue ler um texto e a outra metade que consegue ler um texto tem dificuldade em entendê-lo” – como pontuado pelo ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), Mangabeira Unger [ver aqui]. Por trás das preocupações com a qualidade da educação, conforme ilustradas pelo PL 8.200/2014, está o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), do qual o deputado Alexandre Leite extrai o baixo desempenho do Brasil para legitimar a alegada necessidade de proibição da promoção automática.

Nós não somos a realidade da história

Fica claro, com essa parca justificativa, que o “jeitinho” brasileiro extrapolou o nível interpessoal para se apoderar do nível político – o que é evidente há muito tempo e por muitas outras razões. Mas o que espanta na defesa desse PL é a miopia dos nossos parlamentares. Não é preciso dedicar muito tempo nem se aprofundar tanto na análise sobre os efeitos sociais práticos da educação para entender que, em última instância, o nosso sistema escolar, como já o é, ao mesmo tempo que cria sucessos, cria em contrapartida milhares de “marginais”, “excluídos” e outras derivações de mesma conotação. Enquanto, porém, o deputado Alexandre Leite e outros partidários do “PL da marginalização escolar” parecem estar mais atentos aos números das estatísticas e classificações vazias, há quem questione essa abordagem do ponto de vista da inclusão: uma das mais importantes atribuições da educação do ponto de vista social.

Na última Conferência Municipal de Educação de Curitiba, realizada em maio de 2015, participou a psicóloga Maria de Fátima Minetto, mestre em Educação e doutora em Psicologia. Para Maria de Fátima, para que a escola se torne um espaço realmente inclusivo, é necessário pensar em “flexibilizações, modificações, adequações e adaptações de currículo que podem implicar em muitas coisas” [ver aqui], inclusive na mudança de avaliações e, conforme o caso, na retenção ou progressão do aluno. O abismo entre essas duas visões muito distintas sobre a progressão dos alunos ao longo do ensino básico não é simples de ser desvendado, mas é certamente possível inferir que, ao passo em que para o PL de Alexandre Leite a questão da qualidade da educação parece não valer mais do que os pareceres expostos por índices, estatísticas e números, a noção salientada por Maria de Fátima expande a visão sobre as atribuições reais da educação, como meio para, e fim fundamental, do desenvolvimento humano.

Permeia a proposta do deputado Alexandre Leite a definição neoliberal de desenvolvimento, de parâmetros puramente econômicos e que está longe do humano. Sobressai daí a miopia cultural que muitos dos nossos concidadãos compartilham: a ideia de que “os outros”, as pessoas mais marginalizadas da nossa sociedade, são tentativas fracassadas de serem “nós”, os “cidadãos de bem” que se escondem por trás de um conceito deturpado, pra dizer o mínimo, de meritocracia e não se acanham em esquecer o passado (e presente) opressor desse país para com aqueles que tem suas liberdades, digamos, menos expandidas. “Nós” sempre nos valemos dessa ideia de que a nossa realidade não é uma cultura, mas sim o mundo real, e que as demais culturas, essas sim são culturas; e se você quiser fazer parte do “nosso” mundo real, da meritocracia vazia e da classificação de “sucesso”, trate de se encaixar nele a seus próprios esforços. Ora! Nós não somos a realidade inexorável da história: nós não passamos de um conjunto de possibilidades – e possibilidades cada vez mais seletivas, pelo andar da carruagem.

A eficácia das políticas públicas

Entristecedor, contudo, não é a divergência de visões sobre o caso da qualidade de educação do Brasil – afinal de contas, para o bem ou para o mal, “essa bola” da qualidade educacional está sendo constantemente levantada por vários setores da sociedade, o que já é benéfico por si só – mas o quão pouco esse PL foi noticiado, assim como ocorre com tantos outros importantes mecanismos e iniciativas políticas. Dentre eles, destaca-se o PL 7.420/2006, de autoria da professora Raquel Teixeira (PSDB/GO) que dispõe sobre a responsabilidade dos gestores públicos na promoção de uma educação básica de qualidade, procurando assim “estabelecer uma legislação de responsabilidade educacional, voltada para a qualidade, com procedimentos claros para a sua promoção e com penalidades para aqueles que não os implementarem” [ver aqui]. O PL 7.420/2006 tramita na Câmara dos Deputados desde 2006 e, ainda que determinado como prioridade, está atualmente – desde 2011 – “sujeito à apreciação do plenário” [ver aqui]. Enquanto dura o retardo na definição de um texto claro para aprovação no Congresso Nacional, pouco se ouviu, da mídia especialmente, sobre o valor que um PL desse porte pode atribuir à qualidade da educação básica, ou sobre a urgência que o país tem em lidar com a questão da irresponsabilidade e da improbidade administrativa para com o setor da educação (e outros). Ao invés disso, a Câmara de Eduardo Cunha procura na periferia, quando não na rua, menores para serem punidos pela violência pela qual – pasmem! – são os culpados. Mas será?

O que procuro levantar aqui, acima de tudo, é que, se as questões da qualidade da educação e das oportunidades sociais estão tão obvia e intimamente ligadas ao bem-estar coletivo da nossa sociedade, por que então não prestar mais atenção nos princípio por trás das práticas? Digo, sentir-se indignado com um caso de violência é perfeitamente normal. Mas levantar a bandeira do policiamento ostensivo é uma asserção demasiadamente vazia se não for considerada a verdadeira fonte do problema: a falta de oportunidades sociais que causa a marginalização de tantos cidadãos. Jovens cidadãos.

Ações políticas concretas, como a PEC 171/93, o PL 8.200/2014 ou o PL 7.420/2006, são medidas claramente efetivas para alterar os rumos da realidade em que vivemos. Mas a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva não é de responsabilidade exclusiva dos nossos governantes. Como bem diz o termo, a sociedade é uma construção, e começa com pequenos atos individuais que se reproduzem no coletivo. Pensar no coletivo, também vale ressaltar, vai além de reproduzir opiniões alheias, independentemente de suas fontes. Requer também uma análise crítica do que está por trás do fato, o que o respalda. Em meio a essas averiguações, não seria de todo incomum apurar que muitas vezes os problemas não devem ser combatidos em suas particularidades expostas, mas sim em seus princípios. Isso significa que o caso de um adolescente de 16 anos cometer um delito não deve gerar soluções na forma de punição daquele “tipo” de indivíduo, mas deve despertar-nos para o que vem antes, o que está por trás daquele caso isolado, “uma tragédia por trás de uma tragédia”.

Mas o que raios tem a ver o caso do menor que esfaqueou um ciclista com os repetentes do ensino básico?

Tem a ver que esse jovem abandonou a escola. O abandono escolar ainda no ensino fundamental tem como uma de suas causas mais evidentes o baixo desempenho do aluno. O baixo desempenho do aluno, não deve, sob nenhum pretexto, ter sua natureza generalizada. As circunstâncias são amplas, múltiplas, complexas. Podem ser geradas externamente (como devido à falta de preparação adequada do professor ou do espaço escolar) ou podem ser consequência de uma dificuldade individual do aluno. Isso não importa. O importante é conseguir perceber que não se trata de enrijecer o sistema, reprovando mais, classificando mais jovens cidadãos como “fracassos” e excluindo-os da realidade dos “sucessos”. Salienta Alexandre Leite que “é indispensável que os procedimentos de recuperação do rendimento escolar, previstos na legislação, sejam de fato praticados, de modo eficaz” [ver aqui]. Mas basta um olhar mais atento ao problema para entender que a proibição da promoção automática não é a solução para isso – ainda que não seja completamente benéfica. Para que políticas públicas sejam eficazes é necessário olhar além, para os princípios que permitem que esses problemas existam em primeiro lugar. De igual modo, basta olharmos para o caso de “X”, o adolescente suspeito de matar a facadas o ciclista e médico Jaime Gold na zona sul do Rio, para entendermos que não jaz ali a causa do problema e, portanto, não é ali que o problema deve ser combatido.

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Maria Paula Maculan é estudante de Relações Internacionais