Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Assassinatos e desaparições, a rotina

Enquanto as emissoras de televisão brasileiras, seguindo a lógica da colonização mental, seguem mostrando, à exaustão, as feridas do atentado do 11 de setembro em Nova York, nenhuma notícia é veiculada sobre o massacre cotidiano que acontece na pequena Honduras. O país da América Central sofreu um golpe de Estado em 2009, apoiado pelo governo estadunidense, que não queria ver o espaço que ele considera “seu quintal” entrar para a órbita da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), liderada por Hugo Chávez. Hoje, dois anos depois, comandadas por um governo títere, as mesmas forças golpistas seguem ceifando vidas dos lutadores sociais, sindicalistas, jornalistas, comunicadores populares e pessoas comuns que decidiram resistir contra o golpe.

Isso mostra que o golpe em Honduras, na verdade, continua em curso, mesmo depois da saída de cena dos militares e das eleições que levaram ao poder um novo presidente, Pepe Lobo. Até porque a consulta popular contou com uma abstenção gigante e não teve qualquer candidato de esquerda. É que a população hondurenha, que foi às ruas dia após dia durante o governo dos militares, não engoliu a “democracia” tutelada pelos golpistas. Até hoje, o novo presidente não é reconhecido pelas gentes. A resistência popular insiste na volta de Mel Zelaya, no retorno a uma verdadeira democracia, sem a mordaça do regime militar e sem a violência assassina que segue sem trégua.

Todos os dias somos informados de mais uma morte, como se o governo tivesse fotografado cada rosto nas passeatas, nas mobilizações, nos atos, e agora os caçasse. Um a um, os militantes vão caindo sob as balas ou sob estranhos acidentes como o que matou o conhecido cantor José Daniel Gonzáles, conhecido como Jerônimo, de 57 anos, que fez de suas canções páginas de resistência. Ele foi atropelado em julho deste ano por alguém que fugiu e nunca mais foi encontrado.

Milícias paramilitares e esquadrões da morte

Outro conhecido militante da resistência, abatido a tiros em sua própria casa neste mês de setembro, foi o ativista Emo Sadloo, natural do Suriname mas vivendo há mais de 30 anos em Honduras. Emo foi atingido por cinco tiros, quatro no peito e um na cabeça. Ele era muito popular entre os resistentes, liderando muitas das marchas realizadas ao longo dos movimentos pelo fim da ditadura. Desde aí, a mídia hondurenha – apoiadora do golpe – vinha fazendo dura campanha pela deportação de Emo, acusando-o de “atos anárquicos” e etiquetando-o como “estrangeiro”. Só que, além de levar 35 anos vivendo em Honduras, ser naturalizado legalmente, Emo tem dez filhos hondurenhos e, na luta, sempre se assumiu como hondurenho, na defesa da liberdade para ele e os seus. Agora não há mais o risco de deportação porque o carismático ativista já está a sete palmos, sem que seus assassinos sejam conhecidos.

Um dia depois da morte brutal de Emo, também foi assassinado, na cidade de Puerto Cortés, norte de Honduras, o comunicador Medardo Flores, membro ativo da Frente Ampla de Resistência Popular (Farp). Assim como ele, outros radialistas e jornalistas seguem sendo perseguidos e caçados, até que tombam crivados de balas em algum beco escuro. Com a sua morte somam-se já 15 assassinatos só de jornalistas. Isso sem contar os desaparecidos, que chegam ao número de 10 só neste ano. É o que o jornalista hondurenho Ronnie Huete chama de carnicería humana.

Ninguém precisa ser muito inteligente para observar que todas essas mortes, acontecidas de maneira violenta ou simulando acidentes, são definitivamente encomendadas. Todos os mortos tiveram participação ativa nas mobilizações da resistência e continuavam a atuar na luta por uma Honduras soberana e democrática. Mas as milícias paramilitares e os esquadrões da morte que se formaram no país, sob as vistas grossas do governo, seguem agindo sem pejo, à luz do dia, sem que o Estado tome qualquer atitude. O que é óbvio, visto que os assassinatos parecem emanar do poder constituído.

Para cada um que cai, centenas se levantam

Da mesma forma que o Estado, a comunidade internacional também parece ter abandonado à própria sorte a população hondurenha que segue em luta. Com as eleições do final do ano de 2009, mesmo não sendo as mesmas reconhecidas pelos hondurenhos, Honduras deixou de ser um foco de cuidado e notícias. Esquecidas pelos órgãos de direitos humanos e pela mídia internacional, as pessoas que atuaram e atuam na resistência são alvos contínuos dos assassinos de aluguel e de sequestradores, identificados – esses, sim – como estrangeiros, ou como agentes do governo, uma vez que seguem toda uma logística oficial, embora não se vistam como força policial. Ao que parece, o governo não quer deixar viva nenhuma pessoa que tenha tido participação firme na resistência. São mortes anunciadas e nada é feito para proteger a população. O terror é pílula diária no país, buscando calar pela força das armas o desejo de liberdade.

Assim, enquanto em todo o mundo se chora a dor dos estadunidenses – que lembram os 10 anos de uma de suas tragédias – esquece-se este terrorismo cotidiano perpetrado pelos aliados do governo estadunidense porque, afinal, qual é o valor da lágrima de uma mulher hondurenha comparada à de uma moradora de Manhattan?

De qualquer forma, com todas estas ameaças e violências reais, o povo hondurenho segue lutando. Jornalistas seguem falando, militantes continuam promovendo marchas e protestos. E, ainda que esquecidas pela mídia comercial, aliada impassível do poder, as gentes e as vítimas do governo de Pepe Lobo são lembradas e narradas pela imprensa popular, pelos movimentos sociais, pelos blogues e toda a sorte de outros meios de comunicação que tomam o mundo. O grito de liberdade que ecoa desde a pátria de Morazán chega até nós e o reproduzimos como um eco teimoso e insistente. Em Honduras, os lutadores estão morrendo, assassinados pelo Estado, mas para cada um que cai, centenas se levantam… Não há força capaz de barrar o sonho da pátria livre.

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[Elaine Tavares é jornalista, Florianópolis, SC]