Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Capo mexicano mostra a cara

Acostumado, algo indiferente, quem sabe até saturado do tema, o cidadão mexicano comum já não acompanha pela mídia, com maior interesse, os fatos, quase sempre horríveis e trágicos, relacionados a uma das desgraças nacionais – o narcotráfico. Todos os dias, o que ele lê, ouve e vê nos noticiários é o de sempre: uma infindável e monótona lista de assassinatos à queima-roupa entre gangues rivais, cadáveres degolados, ferozes tiroteios com polícia e exército na fronteira com os Estados Unidos, execução, nas ruas e redações, de jornalistas íntegros, prisões espalhafatosas seguidas das promessas oficiais de que ‘o governo não dará trégua a esses criminosos’, enfim, nenhuma novidade.

Até agora, contudo, em meio a esse ritmo midiático rotineiro, nunca se havia veiculado a opinião pessoal de um narcotraficante notório, pois estes, quando apanhados e presos, mantêm, apavorados com uma punição terminal do grupo, o silêncio ritual da lei siciliana da omertà.

Mas um deles acaba de falar, provocando acesas discussões, à beira de um escândalo ético dentro da própria imprensa mexicana, que questiona, diante do fato, seu próprio papel – e a serviço de quem – no sistema democrático.

Aposentadoria interrompida

Trata-se de Ismael ‘El Mayo’ Zambada, um dos homens de confiança do capo maior, Joaquín ‘El Chapo’ Guzmán, líder de um dos quatro grandes cartéis da droga do México, o do estado de Sinaloa, no norte do país. Na verdade, a polêmica não se deve tanto a que ele tenha revelado coisas novas – não o fez –, mas ao ineditismo da situação: um narco abrindo o jogo, concedendo uma entrevista e até se deixando fotografar ao lado do entrevistador. E a um veteraníssimo jornalista, há muito tempo aposentado, mas sempre um repórter, Julio Scherer García, oitentão e pouco, chamado por seus pares de periodista historico.

Não sem razão. Ao ser expulso do comando do jornal Excelsior em 1976, por ordens do presidente da República à época, Luís Echeverría, irado com o tom sempre crítico do então grande matutino, honrosa e corajosa exceção dentro de uma imprensa dócil e corrompida pelo sistema autoritário de partido único, Scherer saiu de cabeça erguida e, acompanhado por alguns fiéis colaboradores, fundou semanas depois a revista Proceso, que dirigiu até 1996. Revista que também se tornaria histórica, pois, ao manter um tom ainda mais duro e não poucas vezes exacerbado em relação ao corroído sistema político mexicano, faria florescer uma ampla gama de novas publicações, acabando de vez com o controle oficial e implantando na mídia a livre expressão.

Depois de vinte anos de longas e solitárias noites de fechamento semanal, fortes pressões comerciais e ameaças telefônicas de aspones do sistema, Scherer García deixou de vez a velha redação, na Calle Fresas, 13, no bairro Del Valle, ao sul da Cidade do México, para escrever livros sobre grandes e polêmicos temas nacionais. E, de vez quando, voltar ao ofício de repórter, abordando temas de maior relevância. É o caso de agora.

Jornalismo ou relações públicas?

A entrevista, matéria de capa, é curta. O capo dá respostas evasivas, tímidas até, mas se expressa sem cinismo ou rancor e tampouco lança desafios ao sistema. Acaba dizendo coisas que os mexicanos já sabem há muito tempo. Bem ao estilo dos mafiosos, tem uma esposa, outras cinco mulheres, quinze netos e um bisneto. Confessa seu pânico de apodrecer numa solitária e descreve seu chefe, ‘El Chapo’ Guzmán, como ‘um amigo, conversamos sempre’.

Afinal, do que se trata? Isso é jornalismo ou relações públicas? – é a pergunta feita nos meios jornalísticos mexicanos.

O governo, via Ministério da Justiça, lacônico, considerou bom o resultado do ‘furo’ da revista Proceso e seu repórter maior, don Julio Scherer García. Os colegas de Scherer García, contudo, se mostram divididos. Uns acham que ele, repórter, cumpriu seu dever – foi ao esconderijo do capo e o entrevistou. Outros, indignados, consideram a entrevista uma grave distorção do exercício jornalístico, um mero trabalho de relações públicas para o narcotráfico.

Houve quem lembrasse, e bem, que esse mesmo narco Zambada e seu chefe, ‘El Chapo’ Guzmán, já mandaram seqüestrar, torturar e assassinar centenas de jornalistas por todo o país, profissionais cujo erro fatal foi investigar e denunciar as barbaridades perpetradas pelo comércio voraz da droga. A tudo isso, don Julio, que é de pouco falar, responde: ‘Si el mismo diablo me ofrece uma entrevista, voy a los infiernos…’

Trechos da entrevista

** ‘Minha captura não resolve o problema do narcotráfico, que se deve a algo muito arraigado no México, a corrupção. E tem mais: prender, matar ou extraditar os capos tampouco resolve. No dia seguinte, já tem outros em atividade.’

** ‘Um dia decido entregar-me para que me fuzilem. Meu caso será exemplar, uma advertência para todos. Sou fuzilado, e aí estoura a maior euforia por todo lado. Mas ao fim de alguns dias, o que veremos é que nada mudou.’

** ‘O problema do narcotráfico é que envolve milhões de pessoas. Como controlar toda essa gente?’

** ‘O governo chegou tarde nessa luta, e não existe alguém no México que tenha uma saída para essa situação. O governo está infiltrado desde baixo, a corrupção tem sólidas raízes no país.’

** ‘Ao presidente Felipe Calderón, seus assessores enganam todos os dias com relatórios falsos, com progressos no combate à droga que não se dão. É um bando de farsantes negando o óbvio, que essa é uma guerra perdida.’

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Jornalista e escritor, ex-correspondente de Veja no México e América Central